A concepção urbanística da Praça dos Três Poderes, com sua simetria geométrica e monumentalidade simbólica, pretendia representar o equilíbrio entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Cada Poder com seu espaço, sua função e seus limites.
Contudo, na prática institucional brasileira recente, esse triângulo vem se deformando. O Supremo Tribunal Federal (STF), tradicionalmente o guardião da Constituição, passou a ocupar posição de protagonismo crescente — não apenas como intérprete da norma, mas como agente de deliberação política.
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Esse movimento é fruto de um desequilíbrio entre os Poderes. O Executivo, ao ser contrariado em suas iniciativas, tem recorrido sistematicamente ao Judiciário. O Legislativo, por sua vez, diante de sua fragmentação e dificuldades para formar maioria estável, transfere decisões cruciais ao Supremo. Provocado de forma reiterada, o Judiciário responde — e, ao responder, frequentemente ultrapassa os limites da jurisdição para adentrar o campo das escolhas políticas.
Essa prática representa mais do que a judicialização da política: trata-se da colonização do processo político por via judicial. A toga se tornou, em muitos casos, um segundo gabinete da Presidência ou uma instância recursal informal do Congresso Nacional.
Casos concretos ilustram essa distorção. No tema das emendas parlamentares, por exemplo, o Congresso não consegue organizar, de forma transparente e equitativa, a própria execução orçamentária. O resultado é a transferência da função de ordenador de despesas para o STF, que passa a arbitrar disputas sobre critérios de liberação de recursos — uma atribuição que, por essência, pertence à esfera político-representativa.
Outro exemplo marcante foi o recente impasse sobre o IOF. Após o Executivo editar decreto aumentando a alíquota, o Congresso, em rara articulação, derrubou a medida. O governo, desconfortável com a derrota, recorreu ao STF. A corte suspendeu ambos os atos, o decreto e sua revogação, e convocou audiência pública.
No fim, o Judiciário tornou-se o árbitro de uma controvérsia que deveria ter sido encerrada no âmbito político. O que se viu foi a cristalização de um padrão: a judicialização como recurso a ser acionado sempre que um Poder é contrariado.
Mesmo em episódios nos quais o STF agiu em legítima defesa institucional como no caso dos ataques de 8 de janeiro , o resultado foi o reforço de sua centralidade simbólica. A corte transformou-se não apenas em tribunal constitucional, mas em pilar de estabilidade do regime. Isso pode ser interpretado como um sinal de prestígio, mas traz consigo o risco do desgaste e do transbordamento de suas funções típicas.
Essa sobrecarga institucional tem consequências. O Supremo, ao assumir o papel de instância decisória final para todos os impasses políticos, perde a reserva de jurisdição que deveria protegê-lo do contágio do jogo político. Quando toda controvérsia termina no STF, o tribunal não está sendo valorizado — está sendo exaurido.
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É preciso restabelecer o equilíbrio. O Congresso deve recuperar sua capacidade de produzir consensos e assumir suas responsabilidades deliberativas, sem terceirizar decisões ao Judiciário. O Executivo precisa aceitar os freios naturais do sistema republicano, sem transformar derrotas políticas em questões judiciais. E o Supremo Tribunal Federal deve reafirmar seus limites lembrando que seu papel não é resolver impasses políticos, mas garantir que eles ocorram dentro das regras do jogo.
A democracia não exige um árbitro permanente. Ela exige instituições capazes de deliberar, errar, aprender e se corrigir dentro do próprio jogo político. Quando o Judiciário passa a ser o destino inevitável de toda crise institucional, deixa de ser o garantidor da Constituição para se tornar, ele próprio, parte do impasse. E um Poder que se torna indispensável corre o risco de se tornar insustentável.