Este texto analisa o PL 26/2025, apelidado de PL Anti-Oruan, que visa proibir a contratação, pelo município de São Paulo, de artistas que expressem “apologia do crime organizado ou do uso de drogas”.
A proposta desperta debates acalorados sobre liberdade de expressão artística, política de drogas, moralidade pública, proteção infantojuvenil e os limites do repertório financiado com dinheiro público.
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Ainda que essas discussões mereçam atenção, o foco aqui é outro. A análise se restringe a dois pilares: (i) a repartição de competências legislativas entre os entes federativos e (ii) o desenho institucional necessário para tornar o PL aplicável — ou, ao menos, exequível.
Afinal, de onde vem o poder de proibir? E quem, no fim das contas, vai decidir o que é — ou não — apologia no palco?
Competência legislativa
A análise da constitucionalidade do PL Anti-Oruan demanda um exame acurado sob duas angulações centrais da competência legislativa: (i) a definição de normas gerais de licitação e contratação; e (ii) a disciplina de matéria penal.
O artigo 5º do PL prevê:
“Fica proibida à Administração Pública Municipal, direta ou indireta, a contratar shows, artistas e eventos abertos ao público infantojuvenil que envolvam, no decorrer da apresentação, expressão de apologia ao crime organizado ou ao uso de drogas”.
Contudo, nos termos do artigo 22, XXVII, da CF/88, compete privativamente à União legislar sobre normas gerais de licitação e contratação. Aos entes subnacionais — estados e municípios — é atribuída competência suplementar, limitada à regulamentação de aspectos específicos, que não alterem o núcleo estruturante da legislação federal.
A CF/88, contudo, não conceitua expressamente o que se entende por “norma geral”. Nessa lacuna, a doutrina assume protagonismo. Tércio Sampaio Ferraz Júnior concebe as normas gerais como um “núcleo comum e uniforme” de preceitos, estabelecido pela União, cuja integridade deve ser resguardada mesmo diante das legítimas variações locais.
Segundo o autor, a autonomia federativa deve ser exercida sem alterar tipologias jurídicas fundamentais, conceitos estruturantes ou a interoperabilidade normativa entre os entes federativos: normas gerais e competência concorrente – uma exegese do artigo 24 da Constituição Federal.
Tal entendimento encontra respaldo consolidado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). Destacam-se os seguintes precedentes:
- ADI 3.670: declarou a inconstitucionalidade de norma distrital que impunha restrições a empresas por práticas discriminatórias, por configurar invasão à competência da União sobre normas gerais de licitação;
- ADI 4.658: julgou inconstitucional norma estadual que criou hipótese de dispensa de licitação por afrontar o regime nacional de contratações públicas; e
- RE 547.063: decidiu pela inconstitucionalidade de exigência feita por ato normativo de Tribunal de Contas estadual, que impunha controle prévio de editais sem previsão legal, por configurar invasão à esfera normativa da União.
Esses precedentes exemplificam o posicionamento do STF no sentido de qualquer tentativa de inovar, em sede local, sobre os critérios estruturais de contratação ou de aplicação de sanção — sobretudo quando baseada em juízos morais difusos — importa em afronta à competência normativa da União.
Entretanto, os problemas de competência não param por aí.
Sob o prisma atinente à matéria penal, o vício é ainda mais evidente. A CF/88, em seu artigo 22, I, atribui à União a competência privativa para legislar sobre Direito Penal. O PL Anti-Oruam, ao condicionar a contratação artística à inexistência de conteúdos que configurem apologia, usurpa essa competência.
A condenação por apologia, tipificada no artigo 287 do Código Penal, sujeita-se, nos termos do artigo 5º, incisos LIV e LV da CF/88, ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório. Portanto, somente haverá punição na hipótese de sentença penal condenatória transitada em julgado.
A tentativa de converter uma infração penal em critério administrativo de contratação pública constitui um desvio institucional inconstitucional. A imposição de sanções administrativas — como a rescisão do contrato ou a aplicação de multas — com fundamento em meras alegações de prática criminosa, viola a presunção de inocência e subverte a lógica do Estado de Direito.
Desenho institucional
Ainda que se abstraísse os vícios formais de inconstitucionalidade relacionados à competência legislativa, subsistiria a necessidade de examinar a efetividade da norma proposta sob a ótica do desenho institucional.
O PL Anti-Oruam cria para a prefeitura a competência de processar denúncias de apologia, prevendo, inclusive, a aplicação de sanções administrativas — multa e rescisão contratual. O auto de infração poderia ser lavrado por agentes da Polícia Militar ou da Guarda Civil Metropolitana. No entanto, várias questões emergem:
- Quais critérios serão mobilizados para aferir a existência da apologia ao crime em uma apresentação artística?;
- Qual instância administrativa municipal será incumbida desse juízo de valor?;
- Que formação técnico-jurídica possuirão os agentes públicos encarregados de aplicar penalidades?; e
- Quais garantias processuais — como contraditório, ampla defesa e imparcialidade — serão asseguradas?
Além disso, ao atribuir a guardas civis e policiais militares a função de interpretar e aplicar conceitos penais — notadamente o de apologia — sem intermediação judicial e fora dos marcos do devido processo legal, o PL Anti-Oruan opera uma disfuncional transposição de competências próprias do Poder Judiciário para a esfera administrativa. Na prática, cria-se uma instância anômala de julgamento penal por burocratas, alheia ao desenho institucional estabelecido pela CF/88.
Considerando que o PL Anti-Oruan tem sido replicado por diversas Câmaras Municipais, em um país marcado por desigualdades regionais, déficits de capacidade estatal e um processo ainda em curso de profissionalização do serviço público, a ampliação de atribuições sancionatórias a burocracias administrativas vulneráveis à interferência política representa um grave retrocesso institucional.
Desde a promulgação da CF/88, o Brasil vem construindo, com avanços e recuos, uma burocracia guiada pelos princípios da impessoalidade, legalidade e racionalidade procedimental. Nesse contexto, submeter servidores administrativos — muitas vezes sem formação jurídica — à tarefa de julgar conteúdos simbólicos e artísticos à luz de tipos penais abertos compromete a autonomia técnica e favorece a captura da função pública por moralismos e pautas ideológicas.
Ademais, sob a lógica da burocracia weberiana, a autoridade legítima do Estado repousa na existência de normas racionais, procedimentos formais e mecanismos impessoais de responsabilização.
Contudo, a proposta em análise subverte esse arranjo: cria-se uma função policial-administrativa com poderes quase jurisdicionais, sem qualquer estrutura processual que assegure a previsibilidade, a transparência e o controle de legalidade das decisões proferidas.
Conclusão
Portanto, o PL Anti-Oruan incorre em vícios de inconstitucionalidade ao ultrapassar a competência legislativa municipal e dispor sobre matéria penal e normas gerais de licitação.
Além disso, se mostra institucionalmente disfuncional ao atribuir à burocracia do Executivo Municipal funções próprias do Poder Judiciário, feito que compromete a arquitetura institucional do Estado e abre-se perigoso precedente que pode culminar na erosão da arquitetura institucional consagrada no texto da CF/88.