O Direito constitui-se como resultado de uma construção hermenêutica contínua, voltada a interpretar e concretizar os valores predominantes em determinada sociedade. Nesse contexto, diante do complexo e multifacetado desafio de enfrentamento das desigualdades de gênero vivenciadas pelas mulheres, impõe-se ao Direito o papel de alicerce normativo e institucional na promoção da equidade e na garantia do pleno respeito aos direitos fundamentais.
No Brasil, as questões de gênero permanecem profundamente enraizadas em estruturas históricas de preconceito e em práticas violentas, que reproduzem e legitimam relações de poder assimétricas. Tal arranjo social naturaliza, há décadas, a desigualdade, perpetuando privilégios daqueles que ocupam posições de dominação e relegando às mulheres, de forma sistemática, a invisibilidade e o silenciamento.
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Esse quadro se torna ainda mais preocupante quando se constata que os próprios operadores do Direito, em diversas situações, contribuem – consciente ou inconscientemente – para a manutenção dessa lógica opressiva. Atualmente, atitudes de menosprezo à condição feminina no âmbito dos processos judiciais têm se tornado cada vez mais visíveis, não porque sejam fenômeno recente, mas porque passaram a ser denunciadas com maior frequência e intensidade, alcançando espaço central nas discussões contemporâneas sobre violência de gênero.
O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial 1.761.369/SP (2018/0111980-4), com trânsito em julgado em 12 de agosto de 2022, firmou entendimento de que a utilização do processo judicial como instrumento de intimidação, humilhação ou revitimização da mulher constitui afronta direta à sua dignidade, extrapola os limites do exercício legítimo do direito de defesa e caracteriza verdadeira violência processual, passível de reparação por danos morais.
No caso concreto, a Ação de Reparação por Danos Morais teve origem em uma Ação de Investigação de Paternidade anteriormente julgada procedente, após a confirmação do vínculo biológico entre o autor e o investigado, comprovado por exame de DNA. Durante a tramitação da ação investigatória, a parte adversa apresentou manifestações nos autos com conteúdo ofensivo à imagem e à reputação da mãe biológica do autor, alegando, sem qualquer fundamento, que esta mantinha relações sexuais com diversos homens, inclusive com membros da família do investigado, de modo a lançar dúvidas infundadas sobre a paternidade.
Diante desse quadro, a Corte Superior não apenas reconheceu o dever de indenizar como também estendeu a condenação ao advogado responsável pelas ofensas, que, por ser filho do investigado e irmão unilateral do autor, atuou em causa própria, destacando que cabe ao profissional do Direito exercer o filtro ético sobre as informações confidenciadas por seu cliente, limitando-se a levar aos autos apenas elementos pertinentes e necessários à adequada solução da controvérsia.
Como evidenciou a ministra relatora Nancy Andrighi, ao extrapolar suas funções e inserir nos autos fatos ofensivos e irrelevantes para a solução da controvérsia, causando abalo psíquico à parte adversa, não é possível invocar a imunidade profissional como justificativa. A ministra também ressaltou que, em especial nas ações de família, argumentos travestidos de defesa jurídica não podem servir de pretexto para ofensas gratuitas que reproduzem um discurso odioso, sexista, machista e misógino, incompatível com a sociedade atual[1].
Se no passado a liberdade sexual feminina era tratada como escândalo, hoje o verdadeiro escândalo é ainda se encontrarem vestígios da exceptio plurium concubentium — expressão que, em tradução livre, significa “exceção de múltipla concubinagem” — como ocorreu no julgamento citado. Ressalte-se que, a depender do contexto jurídico, “exceptio” e “defesa” podem ser sinônimos, sendo a exceptio um meio processual utilizado pelo réu para invocar um fato capaz de afastar o direito alegado pelo autor.
A exceptio plurium concubentium é um instrumento processual antiquado e violento, ainda utilizado em algumas defesas em ações de investigação de paternidade para tentar deslegitimar a alegação materna. Essa estratégia busca questionar a exclusividade das relações mantidas com o suposto genitor, transferindo à mulher um ônus probatório abusivo e ofensivo.
A gravidade de práticas como essa se torna ainda mais evidente diante da Lei 8.560/1992, que introduziu o exame de DNA como meio técnico e eficaz para solucionar conflitos de parentalidade. Desde então, qualquer especulação sobre a vida afetiva da mãe tornou-se desnecessária. Antes dessa evolução legislativa, contudo, cabia à mulher afastar insinuações de desonestidade com provas negativas, análises fenotípicas do filho — como cor da pele, olhos e cabelos — e até depoimentos testemunhais, submetendo-se a constrangimentos públicos para obter o reconhecimento da paternidade.
Apesar do avanço significativo, ainda há um longo caminho a percorrer. O ordenamento jurídico tem reconhecido a necessidade de coibir práticas judiciais abusivas que prolongam o sofrimento das vítimas, inclusive o uso do Poder Judiciário como instrumento de intimidação, constrangimento ou obtenção de vantagens indevidas — na maioria das vezes contra mulheres. Trata-se de uma forma sutil, mas poderosa, de violência de gênero, capaz de silenciar e revitimizar não apenas as vítimas, mas também seus familiares e redes de apoio.
Nesse contexto, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Resolução 492/2023, tornou obrigatória a aplicação das diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero em todo o Poder Judiciário. A medida busca enfrentar a desigualdade e a discriminação de gênero, garantindo decisões imparciais e vedando expressamente o uso de estereótipos e preconceitos em casos que envolvam violência contra mulheres.
Paralelamente, tramita na Câmara dos Deputados o PL 4830/2024, que busca incluir a violência processual entre as formas de violência doméstica e familiar previstas na Lei Maria da Penha.
O texto define a violência processual como qualquer conduta abusiva ou de má-fé no âmbito judicial destinada a prolongar, dificultar ou manipular o curso do processo, por meio da distorção da verdade, da criação de incidentes infundados, de recursos meramente protelatórios ou de outros expedientes que causem à mulher desgaste psicológico, moral ou financeiro, revitimizando-a ou limitando seu acesso à justiça.
O projeto ainda estabelece que, uma vez constatada a prática de violência processual, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, impor ao agressor: (i) multa entre 1% e 10% do valor atualizado da causa; (ii) indenização pelos prejuízos sofridos pela vítima; e (iii) pagamento dos honorários advocatícios e das despesas processuais decorrentes da conduta abusiva[2].
A responsabilização de quem pratica o assédio processual, aliada à reparação da vítima, cumpre três funções essenciais no enfrentamento da violência de gênero. A função compensatória busca reduzir os danos e o sofrimento da vítima, reconhecendo a gravidade da ofensa e restaurando, na medida do possível, sua dignidade.
Já a função pedagógica serve para desestimular o agressor e a sociedade, deixando claro que condutas abusivas não ficarão sem resposta e terão consequências materiais. Por fim, a função repressiva atua para evitar a reincidência, tornando economicamente e socialmente desvantajosa a prática de assédio judicial.
Diante disso, se o sistema de Justiça reflete os valores sociais, também deve transformá-los. Cabe ao Poder Judiciário, com uma postura firme, combater a violência de gênero no processo e construir novos paradigmas. Julgar com perspectiva de gênero é assegurar um processo verdadeiramente justo, digno e livre de qualquer forma de violência simbólica ou institucional contra a mulher.
[1] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 1.761.369 – SP (2018/0111980-4). Disponível em: https://www.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/ATC?seq=156012417&tipo=5&nreg=201801119804&SeqCgrmaSessao=&CodOrgaoJgdr=&dt=20220622&formato=PDF&salvar=false. Acesso em: 3 ago. 2025.
[2] BRASIL. Projeto de Lei nº 4.830, de 2024. Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para incluir a violência processual como uma das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher. Câmara dos Deputados. Brasília, 2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2839792&filename=PL%204830/2024. Acesso em: 3 ago. 2025.