Imagine a seguinte situação: um colaborador afastado por doença recebe alta médica do INSS, mas, ao retornar à empresa, o médico do trabalho o considera inapto. Ele não pode trabalhar e, ao mesmo tempo, não recebe mais benefício. Esse “limbo previdenciário” (em que o trabalhador não recebe nem salário nem auxílio) não é novidade para profissionais de RH. Trata-se de um vazio legal que gera dores de cabeça em empresas de todos os portes.
No Direito do Trabalho, o contrato fica suspenso durante o gozo de benefício por incapacidade (CLT, art. 476). Passados os primeiros 15 dias pagos pelo empregador, o INSS assume o pagamento. O problema começa quando a autarquia previdenciária entende que o empregado está apto ao trabalho e cessa o benefício, mas o médico da empresa discorda, momento em que o contrato deixa de estar suspenso – voltando a gerar efeitos jurídicos, sem que o trabalhador não possa ser reintegrado às suas funções por ordem médica ocupacional. Sem renda, ele frequentemente busca a Justiça do Trabalho. E quem arca com os salários do período? Em regra, a empresa.
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No cenário do chamado “limbo previdenciário”, os tribunais trabalhistas têm adotado majoritariamente uma postura protetiva ao empregado. Predomina o entendimento de que, declarada a aptidão pelo INSS (ato administrativo dotado de presunção de legitimidade), o contrato de trabalho volta a viger e o empregado está à disposição do empregador. Assim, se o empregador se recusa a permitir o retorno alegando persistência da doença, ele deve arcar com os salários do período em que o funcionário ficou sem receber.
Nessa situação de impasse médico, o TST já decidiu que a responsabilidade pelo pagamento dos salários é do empregador. Em razão disso, é comum a condenação trabalhista das empresas para pagar os salários entre a alta previdenciária e o efetivo retorno do empregado, durante o limbo, sob o entendimento de que o trabalhador estava à disposição do empregador, e deveria ser reintegrado e assalariado.
O entendimento predominante é que cabe ao patrão, ao término da licença médica, reintegrar ou readaptar o empregado em atividade compatível com suas limitações, e não puramente recusar seu retorno, até mesmo em respeito à dignidade da pessoa humana.
Em suma, a ideia é que a empresa não pode simplesmente deixar o empregado sem salário após a alta, pois a suspensão do contrato terminou no momento em que o INSS o considerou apto, não havendo garantia de restabelecimento do benefício, e o trabalhador não poderia ficar desamparado com o contrato em vigor.
Entretanto, há outra face desse impasse legal. Os mesmos tribunais trabalhistas ponderam que o empregador só responde pelos salários se ficar comprovado que partiu dele a recusa em aceitar o empregado de volta. Ou seja, o ônus da prova do “limbo previdenciário” recai sobre o empregado, que deve demonstrar que tentou retornar ao trabalho e foi impedido pela empresa.
Quando a ausência de retorno não decorre de iniciativa patronal, não resta configurado o limbo. A Justiça do Trabalho pode até mesmo reconhecer abandono de emprego em situações assim, aplicando a Súmula 32 do TST, segundo a qual presume-se abandono de emprego se o trabalhador não retornar ao serviço em 30 dias após cessar o benefício nem justificar o motivo.
Portanto, se o empregado não volta porque não pode ou não quer, a empresa não pode ser punida; mas se ele tentar voltar e não conseguir por culpa do empregador, haverá riscos trabalhistas significativos para a empresa.
Do ponto de vista empresarial, o limbo previdenciário é especialmente ingrato e o RH se vê constantemente numa posição contraditória: de um lado, laudo médico indicando que o funcionário não tem condições de trabalho, e por outro, a lei e a jurisprudência o obrigam a pagar salários sem contraprestação em nome da proteção ao trabalhador. Os tribunais enfatizam que os riscos do negócio pertencem ao empregador e que deve prevalecer a função social da empresa sobre a mera lógica financeira.
Não por acaso, muitas vezes também é imposta indenização por dano moral quando a empresa “abandona” o empregado nesse vazio sem salário e sem benefício, configurando falta grave patronal e dando ensejo à rescisão indireta (justa causa do empregador) e ao pagamento integral dos salários de todo o período de afastamento não coberto pelo INSS.
Nessa hipótese, considera-se que o empregador comete ato ilícito se abusa do poder diretivo ao recusar trabalho ou readaptação ao empregado apto pelo INSS, rompendo o equilíbrio do contrato de trabalho e violando deveres fundamentais de proteger a dignidade do empregado.
Diante desse cenário complexo, o que pode fazer o RH moderno?
Em primeiro lugar, deve agir de forma proativa e preventiva. É recomendado que, assim que tiver ciência da alta previdenciária, a empresa convoque formalmente o empregado a retornar ao trabalho ou se apresente para reavaliação médica interna. Esse registro documental ajuda a empresa a demonstrar sua boa-fé e a própria disposição do trabalhador (ou a falta dela).
Caso o médico do trabalho mantenha a inaptidão, não basta “encostar” o colaborador e cruzar os braços. É essencial articular soluções entre as esferas trabalhista e previdenciária: orientar o empregado a recorrer da alta no INSS, fornecer relatórios médicos detalhados e notificar imediatamente a autarquia previdenciária sobre a discordância quanto à aptidão, embasada em exames e laudos atuais.
Durante a disputa médica, a empresa pode optar por manter o empregado afastado em licença remunerada (pagando salários normalmente), para evitar o limbo. Essa alternativa, embora custosa, mitiga o risco de condenações futuras com juros, correções e danos morais.
Também seria possível buscar acordos diretamente com os empregados para reembolso: se o INSS restabelecer o benefício retroativamente, o empregado devolveria os valores que recebeu da empresa naquele intervalo. Caso a via administrativa fracasse, caberia acionar o Poder Judiciário para tentar reverter a alta médica indevida.
Havendo decisão judicial favorável reconhecendo que o trabalhador estava incapacitado, o INSS pagará os valores retroativos e a empresa poderia ajuizar ação regressiva contra a Previdência para se ressarcir do que adiantou ao empregado nesse meio-tempo.
Em outras palavras, embora a jurisprudência atual repasse a conta para o empregador, existem meios de buscar compensação a posteriori – ainda que isso implique longa espera e batalhas judiciais adicionais.
Nota-se que o limbo previdenciário é uma zona cinzenta em que o cumprimento estrito da lei nem sempre acompanha a realidade médica, e quem acaba pagando a conta (literalmente) é o empregador. O RH, portanto, não pode se limitar a cumprir ordens médicas isoladamente – precisa atuar como ponte entre o empregado, a empresa e o INSS.
Isso exige estratégia, sensibilidade e ação jurídica coordenada, com a documentação de todos os passos, manutenção de diálogo com o trabalhador e a busca de aconselhamento jurídico especializado para proteger a empresa sem desamparar a pessoa.
Afinal, não é aceitável para a Justiça do Trabalho (nem para a sociedade) que o empregado fique completamente sem renda por um impasse burocrático. Por outro lado, também não parece justo atribuir indefinidamente à empresa um ônus financeiro por uma situação que ela não criou.
O caminho para a solução definitiva desse impasse talvez dependa de uma intervenção legislativa e, nesse aspecto, já há projeto de lei em tramitação visando preencher essa lacuna (PL 2260/2020), propondo que, se o empregador, por exame próprio, não aceitar o retorno do empregado, alegando que a incapacidade persiste, deverá continuar a pagar o salário integral até que o segurado seja submetido a nova perícia médica oficial.
Ainda, de acordo com o referido projeto de lei, após a nova avaliação do INSS, caso fique confirmada a alegação do empregador, os salários pagos no período seriam compensados com os recolhimentos previdenciários subsequentes; mas caso a perícia não acolha a tese patronal, a empresa deverá arcar com todo o período de afastamento sem direito a ressarcimento.
Assim, o projeto de lei regulamenta a legitimidade do empregador para discutir o benefício do empregado nos casos de limbo previdenciário e seria capaz de resolver grande parte dos problemas enfrentados atualmente pelos empregadores nesse tipo de situação.
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Enquanto a lei nova não vem, resta ao RH e aos advogados das empresas cumprir as obrigações legais, acompanhando de perto os casos de afastamento por saúde, em trabalho conjunto com o departamento médico especializado, antes de cada decisão. O desafio muitas vezes é encontrar o ponto de equilíbrio entre a proteção do trabalhador e a sustentabilidade do negócio.
Em tempos de cobrança por responsabilidade social corporativa, superar o limbo previdenciário requer conformidade legal e inteligência estratégica. Somente com ações coordenadas e, esperamos, com mudanças legislativas pontuais, deixaremos de ver empresas arcando sozinhas com a conta de um impasse que elas não criaram.