Neste artigo trato de uma questão particularmente sensível para o ambiente de negócios: a arbitragem. Como venho insistindo, o projeto de Código Civil traz diversas propostas que partem de boas intenções, mas que terão consequências indesejadas.
É o que denominamos em jurimetria efeito colateral deletério, um dos grandes males da regulação idiossincrática, detectado nas regras de convocação por email e inclusão de novas cláusulas obrigatórias no contrato social. Outro exemplo importante desse risco são as menções ao uso da arbitragem como método de resolução de disputas.
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A arbitragem é uma política pública implementada com extremo sucesso no Brasil, que adveio de algumas características conhecidas. A arbitragem é privada, contando com os recursos financeiros e humanos do mercado para enfrentar os problemas que se propõe a resolver; ela é aplicada, pois foca no aperfeiçoamento das instituições responsáveis pela aplicação do direito; e ela é concisa, já que está baseada em uma legislação breve, racional e sintética.
Seu sucesso se mede em números. O Brasil é um dos maiores mercados de arbitragem do mundo, resolvendo na jurisdição privada questões societárias complexas, disputas sobre fornecimento de bens e serviços e construção civil. Há um grupo ativo de câmaras com movimentação financeira relevante de casos, que varia entre R$ 30 bilhões e R$ 40 bilhões ao ano, e uma numerosa comunidade ativa de especialistas, advogados e árbitros.[1] Outro sinal de sucesso é a adoção da arbitragem pelo mercado de capitais, que tem sua própria câmara de arbitragem, a CAM B3.
Além das características estáticas, outro ângulo do sucesso desse instituto é dinâmico. Toda modificação, ainda que positiva, implementada em uma ordem jurídica gera atritos institucionais e custos, que requerem tempo para a compreensão, acomodação e estabilização das novas regras.
A Lei de Arbitragem, promulgada em 1996, teve sua constitucionalidade reconhecida pelo STF em 2001 e foi reformada uma única vez em 2015, dando tempo para a acomodação entre os institutos abstratos do ordenamento e os casos concretos decididos no plano do coordenamento.[2]
O projeto do Código Civil é a antítese das características estáticas, que explicam o sucesso da arbitragem: trata principalmente de regras materiais, com nenhuma preocupação quanto aos mecanismos de implementação; cria burocracias e complexidades desnecessárias; tem redação confusa e assistemática; e amplia uma inoportuna cogência de regras empresariais. Mesmo na parte que trata de meios privados de resolução, o projeto erra ao tentar dar um impulso à arbitragem sem uma reflexão cuidadosa e sem considerar a estrutura econômica dos destinatários dessas normas.
O atual Código Civil tem um único dispositivo que trata da arbitragem, o art. 853. Esse artigo, de forma sintética e direta, admite “nos contratos a cláusula compromissória, para resolver divergências mediante juízo arbitral, na forma estabelecida em lei especial”. Com base na regra atual, os quotistas que queriam sujeitar sua sociedade à arbitragem podem incluir no contrato social cláusula compromissória, fazendo com que as disputas entre sócios, sociedade e administradores sejam resolvidas por esse tipo de solução.
A autorização existe porque a arbitragem pode ser eleita como método alternativo em qualquer contrato válido, que trate de direitos disponíveis. Esse é evidentemente o caso dos contratos sociais em sociedades simples e limitadas. Com isso, uma autorização legal expressa para essa opção é redundante e, portanto, absolutamente desnecessária.
Vem, então, o projeto de Código Civil e, na parte societária, introduz cinco dispositivos com referência à arbitragem, os arts 997, IX, 1.003, 1.010, 1.029 e 1.137. O art. 997, para mim o mais inoportuno, determina que o contrato social deve obrigatoriamente indicar “se as disputas entre sócios e entre sócios e a sociedade serão decididas por arbitragem”. Com isso, a opção por um instituto, de difícil acomodação ao reduzido porte econômico da esmagadora maioria dessas sociedades, torna-se cláusula obrigatória a ser incorporada nos contratos.
Está claro para mim que o projeto não torna a arbitragem em si obrigatória e a opção continua aberta às sociedades. No entanto, a proposta determina que essa escolha seja expressamente feita no contrato social, o que não é uma mudança trivial. Se hoje o silêncio do instrumento de constituição é suficiente para a não adesão ao instituto (uma regra de opt-in), com a aprovação do projeto os sócios terão de expressamente recusar o instituto da arbitragem em seus contratos sociais, uma vez que a ausência de uma recusa expressa impede o registro perante a Junta Comercial.
Qual seria a razão para converter um opt-in em uma cláusula obrigatória? Quero crer que explicação não é jurídica, mas comportamental. Por conta da tendência natural dos agentes econômicos e operadores do direito permanecerem inertes, sabe-se que regras de opt-in diminuem a taxa de adesão às políticas públicas. Ao exigir a opção expressa no contrato, o propósito da reforma seria quebrar essa inércia e induzir um aumento da utilização da arbitragem em sociedades limitadas, aumentando a quantidade de empresas sujeitas a esse método de resolução de disputas.[3]
A medida serviria como uma espécie de “nudging” legislativo, um peteleco regulatório para induzir uma parcela maior das sociedades limitadas a incluírem em seus contratos sociais uma cláusula compromissória optando pela arbitragem como método de resolução de disputas. O problema desse empurrão regulatório é que ele tem potencial e cria o risco de gerar diversos problemas sérios, afetando de forma deletéria a jurisprudência da arbitragem e produzindo o efeito oposto daquele que aparentemente foi desejado pelos autores do projeto.
Remeto novamente ao estudo da FGV realizado na Junta Comercial do Estado de São Paulo, demonstrando que 38% das sociedades limitadas têm capital social de até R$ 10 mil e 39,9% entre R$ 10 mil e R$ 50 mil. O estudo mostrou também que 52,2% microempresas (ME) e 11% empresas de pequeno porte (EPP).[4] Confirmando aquilo que a experiência coditiana nos mostra, essas sociedades são empresas familiares de pequeno porte, com baixa capitalização e reduzido nível de profissionalismo, que dependem de subsídios tributários para sobreviverem.
Como consequência dessa estrutura, como indiquei em pesquisa anterior, o regime de contencioso societário da limitada é a dissolução conduzida perante o Poder Judiciário.[5] A estrutura dessas empresas é tão reduzida que qualquer desavença surgida entre os sócios converge para uma dissolução da sociedade, não havendo espaços para outras disputas, como ações de anulação de deliberações, responsabilização de administradores e de sócios controladores, em especial através de arbitragens.
Partindo-se dessas premissas, é possível supor que as sociedades limitadas – de maior porte, com patrimônio capaz de suportar os custos e assessoria jurídica -, que excepcionalmente prefeririam utilizar-se da arbitragem como método de resolução de disputas já o fazem. Também pode-se assumir que esse incentivo adicional, se der certo, pode empurrar uma quantidade significativa de sociedades despreparadas a um método de resolução de disputas significativamente mais custoso e complexo.
Pode-se dizer que a conversão do opt-in em cláusula obrigatória seria inofensivo, porque bastaria aos quotistas dizerem não no contrato social. No entanto, do ponto de vista comportamental a questão não é tão simples. Sabemos bem que quotistas investem pouco na elaboração de seus contratos sociais para liberar os parcos recursos disponíveis ao investimento produtivo. Os contratos são copiados de modelos prontos disponíveis na internet ou são elaborados por contadores, com formação inadequada para esse tipo de aconselhamento.
É em razão dessa escassez de recursos e da concisão dos contratos que as regras legais supletivas em limitadas, bem como os regimes de opt-in e opt-out, e a escolha entre default rules e active choosing, são tão importantes. Caso um modelo de cláusula compromissória seja incorporado nesse fluxo de minutas ocorrerá um choque entre a estrutura econômica das limitadas e a arbitragem. Ao serem privadas de acesso à jurisdição, essas sociedades buscarão socorro no Poder Judiciário e poderão dar causa ao surgimento de uma perigosa jurisprudência deletéria, relativizando a validade das cláusulas compromissórias.
Esse receito não é mera especulação e pode ser observado na experiência da arbitragem em outras áreas em que empresas de menor porte foram atraídas por esse regime contencioso. Por exemplo, diversos contratos de franquia com cláusula compromissória foram judicializados sob o argumento de abuso de poder econômico, custo excessivo e inviabilização de acesso à justiça. O resultado foi o surgimento de precedentes autorizando o Poder Judiciário a afastar compromissos arbitrais considerados patológicos, deixando de aplicar o princípio kompetenz-kompetenz.
Outro indicativo dos riscos para a estabilidade dos compromissos arbitrais foi empiricamente documentado em uma recente pesquisa. O observatório da arbitragem, pesquisa conjunta da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) e do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBar), mostrou que contratos de colaboração envolvendo partes com estrutura econômica reduzida apresentam uma taxa de procedência em ações anulatórias (35,6%) três vezes maior do que nas arbitragens em geral (11,8%).[6]
Segundo o mapa de empresas do governo federal, existem hoje 7.787.851 sociedades limitadas ativas, que representam 95,89% do total de 8.121.309 sociedades, cooperativas, grupos e consórcios do país.[7] Contratos sociais são negociados por quotistas com reduzido grau de análise crítica, pela falta de experiência e recursos para contratar assessoria jurídica.
Imagine-se que, como consequência desse empurrão regulatório, uma fração infinitesimal dessas sociedades, digamos 0,05%, incluam de forma reflexa ou pouco ponderada uma cláusula compromissória inadequada para a sua estrutura, sem uma estimativa razoável de custos. O resultado serão milhares de disputas expostas a um regime societário inadequado, parte das quais convertidas em ações anulatórias de compromisso arbitral reputados patológicos. Um absoluto desastre.
Outro grave tropeço com injustificável incremento de complexidade do projeto de Código Civil está na nova redação atribuída ao art. 1.003, que trata da responsabilidade do cedente de quota social pelas suas obrigações. A cessão de quota é um negócio societário muito frequente, talvez o mais usual de todos, sendo a definição da responsabilidade do cedente por suas obrigações como sócio um esteio fundamental de sua segurança jurídica, indispensável para alocação de riscos e precificação.
A lição é velha conhecida. O art. 1.003 estabelece que a eficácia da cessão perante os demais sócios e a sociedade depende de modificação do contrato social. Além disso, o parágrafo único fixa um prazo decadencial de 2 anos, contados da averbação da alteração, para o encerramento da responsabilidade do cedente perante a sociedade e terceiros, pelas obrigações que aquele tinha como sócio.
O dispositivo na sua atual redação tem duas funções. Primeiro, incentivar a formalização da cessão através da modificação do contrato social, para torná-la eficaz perante os demais sócios e a sociedade. Segundo, incentivar a averbação da alteração na Junta Comercial, para torná-la pública perante terceiros, permitindo a estes, dentro de um prazo razoável de dois anos, pleitear a responsabilização do cedente por obrigações anteriores à sua saída.
O projeto cria quatro parágrafos novos para esse dispositivo. Pelo novo § 1º, o prazo corre por “2 anos depois de averbada a alteração ou até eventual citação do cedente em processo judicial ou arbitral”. Pelo § 4º, “expirado o biênio sem que o cedente tenha sido citado, o credor decai do direito de exigir a corresponsabilidade do cedente.” Da interpretação dos dois dispositivos, entende-se que a primeira citação do cedente em qualquer ação de responsabilidade colocaria termo ao prazo e encerraria a possibilidade de novas ações.
Difícil entender por que a citação do cedente em qualquer processo colocaria termo final ao prazo, fazendo com que outros potenciais interessados decaíssem imediatamente dos seus respectivos direitos. Com isso, o primeiro a propor ação encerraria a fluência do prazo para todos, inviabilizando a veiculação de outros interesses. Nesse contexto, é fácil imaginar a distribuição de uma ação de responsabilidade dias após a averbação da alteração contratual apenas para, após realizada a citação, encerrar o regime de responsabilidade por um acordo ou desistência. O prazo de dois anos seria reduzido a dias.
Seguindo, o § 2º estabelece que contagem do prazo decadencial previsto no § 1º não é suspensa nem interrompida pelo ajuizamento de ação em desfavor da pessoa jurídica. O que seria uma ação em desfavor da pessoa jurídica? Possivelmente uma ação que tenha a sociedade como ré. Por que uma ação proposta contra a sociedade interromperia um prazo de responsabilização de um ex-sócio? Não se sabe, mesmo porque prazos decadenciais não podem ser interrompidos nem suspensos por qualquer causa. O dispositivo não faz sentido.
Vem então o § 3º e estabelece que o prazo decadencial é contado da averbação da modificação do contrato social (o que já consta do § 1º) “para a retirada do sócio”. Aqui há uma atecnia na redação, uma vez que a averbação da alteração contratual traz uma modificação do quadro social em razão de cessão de quota e não do exercício do direito de retirada por um sócio, institutos sabidamente distintos.
É possível interpretar que o projeto esteja propondo aplicar esse mesmo prazo decadencial para o caso de dissolução parcial decorrente do exercício do direito de retirada. No entanto, essa interpretação se sobreporia ao art. 1032 da mesma lei, que também estabelece o prazo de dois anos de responsabilização para retirada, além de exclusão e morte. Para que serve o § 3º não está claro.
Por fim, vem o § 5º e estabelece que em caso “de óbito do cedente, o prazo se conta do falecimento e não da averbação superveniente a qualquer título”. A hipótese é, no mínimo, curiosa. Caso a cessão não tenha sido averbada e o cedente continuar como sócio no contrato social, a sua morte causa a dissolução. Nessa hipótese, o art. 1032 já estabelece o prazo de dois anos para responsabilizar os herdeiros.
Por outro lado, caso o cessionário averbe a cessão depois do falecimento para evitar a dissolução no inventário e a sucessão, o prazo de dois anos deve correr da averbação da cessão e não do falecimento, como determina a lei hoje. Contar do falecimento prejudica terceiros, uma vez que a notícia do óbito não se torna pública imediatamente e o início da contagem beneficia partes que propositadamente deixaram de averbar a cessão.
Essas propostas são exemplos de regulações idiossincráticas. São alterações que não endereçam divergências jurisprudenciais, não positivam entendimentos consolidados, nem auxiliam na melhor interpretação sistemática da lei. Não há também qualquer base empírica que as justifique, sendo provavelmente baseadas em experiências pessoais e casos anedóticos vivenciados pelos envolvidos no processo legislativo.
[1] LEMES, Selma Ferreira. Arbitragem em Números: pesquisa 2024. Link: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://canalarbitragem.com.br/wp-content/uploads/2024/12/Arbitragem-em-Numeros-2024.pdf. Acesso em 4 de agosto de 2025. Notícia no Valor Econômico de 8 de setembro de 2023 estima em mais de R$ 500 bilhões as arbitragens envolvendo agências reguladoras. Link: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2023/09/08/arbitragem-bate-recorde-com-bilhoes-de-reais-em-disputa.ghtml. Acesso em 4 de agosto de 2025.
[2] Em jurimetria a ordem jurídica é dividida em ordenamento e coordenamento. O ordenamento é o plano das normas gerais e abstratas. O coordenamento é o plano das normas individuais e concretas. Um dos objetivos programáticos da jurimetria é entender a relação entre ordenamento e coordenamento, em especial grau de aderência (ou eficácia) das leis. NUNES, Marcelo Guedes. Jurimetria: estatística, direito e tecnologia. São Paulo: RT, 3º ed., pp. 136-143
[3] Sobre o tema ver SUNSTEIN, Cass R., Default Rules Are Better Than Active Choosing (Often). In Trends in cognitive sciences. Volume 21, Edição 8, Agosto de 2017. pp. 600-606.
[4] Radiografia das sociedades limitadas. Link: https://www.mfcap-fgv.com.br/_files/ugd/b5264b_cef50863d13448b19069d859ce667691.pdf. Acesso em 4 de Agosto de 2025.
[5] NUNES, Marcelo Guedes. Jurimetria aplicada ao direito societário: Um estudo estatístico da dissolução de sociedade no Brasil, 2012. Tese de doutorado.
[6] Observatório da arbitragem – ABJ e CBar. Link https://cbar.org.br/site/wp-content/uploads/2023/11/relatorio-observatorio-da-arbitragem-cbar-abj.pdf. Acesso em 4 de Agosto de 2025.
[7] Link: https://www.gov.br/empresas-e-negocios/pt-br/mapa-de-empresas. Acesso em 1º de Agosto de 2025. Cálculo realizado: 23.684.018 empresas ativas menos 15.562.709 empresários individuais.