A reforma do Código Civil é justificada pelos seus autores através de argumentos que reiteradamente aparecem em diversas propostas legislativas e exposições de motivos sobre os mais variados temas. São justificativas genéricas e propósitos abertos, como necessidade de modernização, desburocratização, simplificação, busca por segurança e previsibilidade e incorporação da jurisprudência do STJ.
Tais justificativas funcionam como uma espécie de mantra, uma fórmula padrão repetida por autores de projetos legislativos, desacompanhadas de métricas, indicadores, metas ou objetivos quantificáveis. Com isso, fica prejudicada a capacidade das autoridades e da academia verificar a conveniência da alteração, bem como seu o grau de sucesso ou fracasso, caso venha a ser aprovada.
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Em meio a tais generalidades, incompatíveis com a responsabilidade inerente a uma reforma dessas proporções, procurei demonstrar nos três artigos anteriores que as propostas de alteração trazidas no projeto marcham no sentido oposto aos apontados pelas justificativas. As propostas são retrógradas, incrementam a complexidade, aumentam a burocracia, reduzem a segurança e a previsibilidade e, por fim, não têm qualquer relação com a estabilização de precedentes do STJ.
Essas mesmas conclusões se aplicam a cinco outros pontos de alteração propostos pela reforma, sobre os quais falarei brevemente. São eles: a alteração da definição de empresário, a inclusão de regras processuais sobre a dissolução total, o fim da diferenciação entre firma e denominação, a revogação de parte dos tipos societários menores e o tratamento a sociedades estrangeiras.
A despeito de serem invocados como pontos positivos aptos a justificar os gastos e riscos inerentes a uma mudança legislativa dessa envergadura, as alterações não apresentam mínima capacidade de gerar ganhos econômicos ponderáveis. Ao contrário, elas vão agravar perdas ou, na melhor das hipóteses, serão irrelevantes, na medida em que refletem meras controvérsias teóricas.
Começo pela redefinição do conceito de empresário constante do art. 966 do Código Civil. A atual definição é de perfil subjetivo, no sentido de se apoiar na delimitação das características essenciais do empresário: ele é profissional, realiza atividade é econômica organizada, para a produção ou circulação de bens e serviços.
A reforma altera o artigo para trazer uma definição de perfil objetivo. Ao invés de definir o empresário, a proposta define a empresa enquanto organização profissional de fatores de produção, com escopo de lucro, para circulação de riquezas, que funciona “em prestígio aos valores sociais e do capital humano”.
Por que alterar o art. 966 dessa forma? Não há qualquer explicação razoável. A atual definição é simples, está incorporada na literatura especializada e foi sistematizada em diversos dispositivos do Código Civil. Já a definição proposta é complexa, conceitualmente imprecisa e apoiada em termos ultrapassados.
Primeiro, o uso da expressão fator de produção é inapropriado. Fator de produção é um termo criado por Jean-Baptiste Say para se referir à terra, ao trabalho e ao capital (este considerado um fator derivado). É um conceito do século 19, que teve utilidade quando a nascente ciência econômica, em uma sociedade ainda majoritariamente agrária, discutia a importância de outros insumos parta a atividade produtiva, que não a terra.
Segundo, o estabelecimento organizado pelo empresário para exercício da empresa é um complexo de bens, com definição mais estrita do que a de fatores de produção. Trabalho, por exemplo, é um clássico fator de produção, porém não integra o conjunto de bens organizado na forma de estabelecimento para o desenvolvimento da atividade empresarial.
Terceiro, o resultado da atividade empresarial, produzido ou circulado pelo empresário, não se confunde com riqueza. Riqueza é um termo amplo, associado a um conjunto de bens, direitos, recursos, poupança, investimentos, capital e direitos passíveis de apreciação econômica e de gerar utilidade. Nem tudo que é riqueza corresponde a bens e serviços da atividade empresarial. Por exemplo, recursos naturais ainda não extraídos, patentes não exploradas, direitos contratuais, treinamento da mão de obra.
Quarto, o objetivo da atividade empresarial não se confunde com circulação de riqueza. Circulação é o processo pelo qual produtos e serviços são transferidos entre diferentes agentes econômicos. Além de circular, a atividade do empresário pode e normalmente envolve a organização de linhas de produção de bens e serviços. É também possível circulação de riqueza que não resulte da atividade empresarial. Por exemplo, a cessão de quota de uma sociedade e o licenciamento de uma patente circulam riqueza, a despeito de não serem bens e serviços produzidos pela empresa.
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Uma redefinição do conceito de empresário poderia enfrentar questões mais importantes, como a definição de atividade econômica e a melhor forma de acomodar entidades econômicas sem fins lucrativos e sociedades uniprofissionais ao regime empresarial. No entanto, o projeto seguiu um caminho tortuoso e inócuo, em uma remodelação que evitou as discussões relevantes, em troca de incerteza e imprecisão.
O projeto propõe a introdução de dez dispositivos regulando a dissolução total de sociedade, os arts. 1.111-A a J. São regras processuais, que tratam de questões como requisitos da petição inicial e prazo de contestação. A justificativa para esse acréscimo é a suposta necessidade de correção da revogação pelo novo CPC dos arts. 655 e seguintes do antigo CPC de 1939, que teria gerado instabilidade na jurisprudência.
Mas há instabilidade? A resposta é: não. Por conta do princípio da preservação da empresa, desde a década de 1970 a dissolução total perdeu espaço nos tribunais. Concomitantemente ao reconhecimento (primeiro na jurisprudência e depois em regras do Código Civil) da dissolução parcial, a dissolução total foi reduzindo-se a um campo mínimo, tanto na lei como na jurisprudência.
Vejamos. As hipóteses de dissolução total estão previstas nos arts. 1.033 e seguintes do Código Civil e no art. 206 da Lei das Sociedades Anônimas. São elas: vencimento do prazo de duração, consenso unânime dos sócios, deliberação pela maioria, extinção da autorização para funcionar, anulação e exaurimento ou inexequibilidade do fim.
O vencimento do prazo não causa dissolução, acarretando a automática prorrogação por prazo indeterminado. A deliberação pela maioria é causa de dissolução parcial, podendo a sociedade prosseguir com os sócios dissidentes. A extinção da autorização não é causa de dissolução, desde que parte sócios decida alterar seu objeto e prosseguir com a sociedade. O mesmo ocorre com a inexequibilidade ou exaurimento do fim, que podem ser superados com alteração ou ajuste do objeto social.
Ressalte-se que todas essas causas já eram raríssimas, a ponto de os especialistas, com décadas de atuação cotidiana, jamais terem se deparado com a maioria delas sequer uma única vez. As únicas causas relevantes de dissolução total remanescentes são a deliberação unânime e a falência.
Se há deliberação unânime há consenso e, portanto, não há razão para judicialização. E sempre que a sociedade se encontrar em estado de insolvência, ela deveria recorrer ao detalhado e completo procedimento falimentar para regular a sua dissolução total, organizando a sua liquidação e pagamento de forma a maximizar o resultado e não prejudicar credores hipossuficientes e dependentes.
A dissolução deverá ocorrer de forma extrajudicial mesmo na hipótese de anulação da sociedade, caso haja patrimônio suficiente para pagamento de todos os credores, ou deve ser judicializada através do procedimento falimentar, caso não haja recursos e a empresa esteja insolvente.
Além disso, a grande maioria das regras do CPC de 1939, cuja revogação é ressentida, está replicada no Código Civil, como os arts. 1.102, o 1.112 e o 1.038, que poderiam ser aplicados a um procedimento de dissolução total judicial, caso um dia apareça. Não há nenhuma norma relevante do antigo procedimento de 1939 que não tenha uma versão análoga em vigência.
Por fim, o art. 673 do CPC de 1939 era claro ao estabelecer que “a dissolução judicial será requerida pela forma do processo ordinário e a liquidação far-se-á pelo modo estabelecido para a liquidação das sentenças.” E o art. 674 afirmava que “a dissolução das sociedades anônimas far-se-á na forma do processo ordinário”.
Ou seja, o antigo procedimento especial nada tinha de especial e em sua rarefeita aplicação acabava, no final das contas, seguindo o procedimento ordinário. Não à toa não há qualquer evidência da suposta instabilidade. Quando muito, citam-se dois ou três casos anedóticos, um número menor do que a quantidade de dispositivos de lei incluídos no projeto. Um caso clássico de hiper-regulação.
Outras duas alterações propostas dizem respeito à supressão da diferenciação entre firma e denominação social, bem como à revogação de tipos societários pouco utilizados.
Firma é o nome civil, completo ou abreviado, do empresário individual ou do sócio de sociedade com responsabilidade ilimitada utilizado como nome empresarial. Denominação é a expressão fantasiada, distinta dos nomes civis do empresário, sócios ou diretores, usada como nome empresarial.
Não há qualquer levantamento que indique a existência de disputas relevantes, população de casos ou problema significativo associado a essa distinção entre firma e denominação. Trata-se de uma distinção assentada, não controvertida, até mesmo porque as firmas são relativamente raras quando comparadas com o emprego da denominação empresarial.
Além disso, o projeto não se atentou para o fato de que as alterações propostas não acabam com a distinção, tendo em vista a manutenção do art. 281 da LSA. Este artigo que permite à sociedade em comandita por ações “comerciar sob firma ou razão social, da qual só farão parte os nomes dos sócios-diretores ou gerentes”.
E aqui chegamos na supressão dos tipos menores. O projeto suprime a sociedade em nome coletivo e a comandita simples, sob o argumento de que os tipos seriam pouco utilizados. Há ganho em revogar? Não. É irrelevante. É como promulgar e depois revogar uma legislação de vizinhança lunar. Não importa a discussão, porque ninguém mora na lua.
Um ponto apenas me chamou a atenção: a manutenção da sociedade em comandita por ações. Segundo o mapa de empresas, o Brasil tem ativas 902 sociedades em nome coletivo, 50 sociedades em comandita simples e 29 sociedades em comandita por ações.[1]
Adotando-se o mesmo critério de maneira uniforme, também deveriam ser revogadas a sociedade em comandita por ações, além dos estabelecimentos de sociedade estrangeira no Brasil (com 571 registros), os grupos de sociedade (com 390 registros) e os consórcios simples (com 14 registros).
Evidentemente essa não é a minha proposta, mas o argumento demonstra a inconsistência da justificativa. A quantidade por si só não deveria ser a única razão para a revogação, mas sim a inutilidade ou anacronismo dos tipos.
Além disso, as providências cabíveis para lidar com um quantitativo baixo não são necessariamente a extinção e a revogação, mas sim a criação de incentivos e remoção de óbices existentes para promover o crescimento das inscrições que queremos estimular.
E agora chegamos às sociedades estrangeiras inscritas no país, cuja quantidade também é muito reduzida e o projeto (acertadamente dessa vez) não revoga. A razão do baixo contingente é a exigência de autorização do Poder Executivo através de decreto para funcionamento, baseada em uma presunção, esta sim absolutamente anacrônica, de que sociedades estrangeiras agiriam contra o interesse nacional.
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Em vez de enfrentar esse anacronismo, a proposta de reforma amplia as exigências dos arts. 1.134 e seguintes, incluindo inscrições e publicações adicionais, exigência de sede física no país e prazos estritos para substituição de representante local.
Em um mercado com mais de 23 milhões de empresas inscritas, existem apenas 571 empresas estrangeiras se submetendo a esse regime draconiano. A revogação desse único ponto faria um bem maior do que a soma de todas as outras alterações, auxiliando a formalizar a presença de plataformas, fintechs, redes de blockchain e startups estrangeiras, que oferecem no Brasil serviços digitais de forma remota.
No entanto, a reforma agrava o regime e afasta o país de um mercado internacional integrado, outra contrariedade em relação aos propósitos declarados. Ao dificultarmos essas inscrições, as empresas de tecnologia que não têm porte financeiro para constituir uma subsidiária permanecerão em um limbo jurídico, oferecendo serviços sem qualquer representação ou contato com as autoridades brasileiras.
[1] Link: https://www.gov.br/empresas-e-negocios/pt-br/mapa-de-empresas/painel-mapa-de-empresas. Acesso em 11 de Agosto de 2025.

