O setor de saneamento brasileiro atravessa um período de intensa transformação, impulsionado pelas metas de universalização estabelecidas pelo Novo Marco Legal por meio da Lei 14.026/2020. Enquanto o Brasil se empenha em construir a infraestrutura necessária para garantir o acesso à água e esgotamento sanitário para toda a população, experiências internacionais, como a do Reino Unido, oferecem importantes insights sobre a constante evolução dos marcos regulatórios.
A publicação, no dia 21 de julho, do relatório da Independent Water Commission (uma comissão criada especificamente para a análise do setor de abastecimento de água e esgotamento sanitário do Reino Unido), propõe uma reestruturação para o setor de água e esgoto na Inglaterra e no País de Gales e acende um debate que, embora parta de um estágio de maturidade distinto, nos permite extrair valiosas lições para a realidade brasileira.
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Em primeiro lugar – e apenas para pegar o gancho da edição passada desta coluna – o relatório ajuda a desconstruir alguns mitos a respeito de uma suposta relação intrínseca entre a natureza (pública ou privada) do prestador dos serviços e a qualidade dos serviços prestados.
Lá também há uma diversidade de prestadores como empresas privadas (que predominam na Inglaterra), empresas públicas (como a Scottish Water), e mesmo uma entidade sem fins lucrativos (a Dŵr Cymru, que opera na maior parte do País de Gales), havendo pontos positivos e negativos da prestação por cada um deles. Fica claro do relatório da Independent Water Commission que o elemento decisivo para o sucesso das prestações dos serviços de saneamento é o modelo regulatório e contratual.
Contudo, é preciso considerar que a discussão no Reino Unido ocorre em um cenário de universalização dos serviços de saneamento já consolidada. A realidade brasileira, embora possa buscar inspiração nessas discussões, enfrenta um desafio primário e incontornável: a necessidade de capital para a realização de investimentos vultosos que viabilizem o provimento dos serviços de saneamento.
Nossos debates, embora cada vez mais sofisticados, não podem se descolar da urgência de construir, expandir e modernizar redes que, em grande parte do território, ainda são inexistentes ou precárias. A meta de universalização, que exige bilhões em investimentos, coloca a atração e a segurança do capital privado no centro da agenda, visto que o setor público historicamente não conseguiu suprir essa demanda sozinho.
Ainda assim, há muito que podemos aprender e adaptar. As preocupações centrais lá giram em torno da fragmentação das competências regulatórias tarifárias, fiscalizatórias e ambientais – que levam tanto a sobreposições de funções entre entidades, quanto a lacunas na supervisão dos prestadores – e de uma abordagem regulatória percebida como adversária dos prestadores, excessivamente focada em benchmarks econométricos de eficiência, mas sem considerar incentivos econômicos adequados.
As propostas de reforma incluem a criação de um regulador integrado na Inglaterra que concentre funções atualmente dispersas entre outras entidades, a adoção de uma abordagem de supervisão mais baseada em uma avaliação customizada de cada prestador e dos incentivos a ele conferidos.
Por exemplo, a proposta de concentrar em uma nova entidade as atividades regulatórias – regulação tarifária, ambiental e de fiscalização da qualidade dos serviços – que hoje estão dispersas entre diversas agências setoriais, está em linha com o movimento do novo Marco Legal do Saneamento Básico de preconizar o papel da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) como regulador de segunda ordem.
A fragmentação regulatória e a insegurança jurídica que dela decorre são riscos reais também aqui. Ainda que as medidas de concentração das funções regulatórias propostas pelo relatório britânico não possam ser diretamente aplicadas à realidade brasileira (em decorrência fundamentalmente do regime de competências instituído pela Constituição Federal), coordenar as agências reguladoras infranacionais com as diretrizes da ANA – tal qual proposto pelo Novo Marco – é vital para a estabilidade regulatória e sucesso do modelo, como destacado pelo relatório britânico.
Da mesma forma, a ênfase na abordagem de supervisão do regulador britânico ressoa com as necessidades brasileiras, mas deve ser vista pelas lentes da nossa realidade. Enquanto lá se busca refinar a atuação sobre empresas já universalizadas, no Brasil, essa supervisão deve focar em garantir fundamentalmente o cumprimento das metas de universalização e dos parâmetros de desempenho contratualizados.
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Não se trata de regular os dispêndios e o retorno financeiro dos prestadores, mas de assegurar que os recursos aportados se transformem efetivamente em infraestrutura e serviço para a população. Os contratos para a delegação dos serviços de saneamento devem focar no resultado dos serviços ofertados, não em como o prestador está alcançando tais resultados, quanto ele tem despendido e qual tem sido o retorno de suas operações. A transparência nos incentivos e a estabilidade das regras são fundamentais para que o investidor se sinta seguro em aplicar recursos num país com o histórico de incertezas regulatórias como o nosso.
As recomendações da Independent Water Commission para o Reino Unido não devem ser tomadas fora de contexto, evitando-se uma mera cópia de modelos. Elas servem para nos mostrar os desafios de uma regulação madura e, na medida do necessário, adaptá-los à nossa realidade de urgência por investimentos. O sucesso do setor de saneamento no Brasil depende de um arcabouço regulatório sofisticado, porém estável, capaz de atrair e reter o capital necessário, assegurando seu emprego em prol da universalização do saneamento no país.