Após a suspensão da Consulta Pública nº 145, por vícios na Análise de Impacto Regulatório (AIR) versando sobre a Política de Preços e Reajustes dos Planos de Saúde, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) volta a se debruçar sobre o tema na Consulta Pública nº 15, concluído nesta semana. Dentre os pontos mais controversos em discussão, a autarquia pretende estabelecer um teto de “sinistralidade” para as empresas do setor – o que, no jargão securitário, refere-se à relação entre as despesas assistenciais da operadora (consultas, exames, internações) e a receita obtida com as mensalidades pagas pelos beneficiários.
À primeira vista, trata-se de uma iniciativa bem-intencionada: conter a escalada dos preços e reforçar a previsibilidade para os consumidores. Contudo, quando analisada em perspectiva histórica, a proposta suscita preocupações. A experiência brasileira demonstra que a intervenção estatal na definição de preços, quando descolada das dinâmicas reais de custo e risco do setor, pode conduzir a desajustes graves — e, não raro, a uma conta bilionária para o próprio Estado.
Precedentes históricos: Varig e o setor sucroalcooleiro
A intervenção estatal em preços e mercados é, em si, constitucionalmente legítima. O art. 174 da CRFB atribui ao Estado o papel de agente normativo e regulador da atividade econômica, legitimando políticas de controle e indução quando orientadas ao interesse público. Todavia, a jurisprudência consolidou a responsabilidade civil do Estado por atos lícitos quando a medida impõe encargos específicos e desproporcionais a determinados agentes econômicos, exigindo a repartição do ônus regulatório.
Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor
O caso da Varig é paradigmático: conquanto válidos do ponto de vista, os congelamentos tarifários nos anos 1980 produziram desequilíbrio grave nas concessões. No RE 571.969, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o dever de indenizar com fundamento na teoria da responsabilidade civil do Estado por atos lícitos, diante do ônus excepcional suportado pela companhia aérea.
Situação análoga se deu no setor sucroalcooleiro. Ao fixar preços da cana-de-açúcar abaixo dos custos de produção, a política de tabelamento de preços do governo federal transferiu prejuízos às usinas. No RE 648.622, o STF reafirmou que a intervenção econômica deve respeitar os princípios constitucionais da livre iniciativa e da proporcionalidade. Quando isso não ocorre, a indenização é cabível.
Desse modo, ainda que intervenções como tabelamentos possam ser válidas à luz do art. 174 da Constituição, elas não blindam o Estado dos efeitos indenizatórios quando geram desequilíbrios setoriais e prejuízos concentrados.
A experiência das concessões rodoviárias no governo Dilma
O setor de infraestrutura também oferece lições importantes. Durante o governo Dilma Rousseff, tentou-se limitar a taxa interna de retorno (TIR) das concessões rodoviárias a patamares pouco atrativos. O resultado foi o esvaziamento dos leilões: empresas não apresentaram propostas diante da percepção de inviabilidade econômica. A solução veio apenas quando o governo elevou a taxa de retorno para 9,2% ao ano, ajustando as condições para atrair investidores.
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A analogia com a saúde suplementar é direta: ao impor um teto rígido à sinistralidade, a ANS pode gerar desinteresse das operadoras, restringindo a concorrência e afastando novos entrantes. Mais do que isso, pode comprometer a solvência das empresas existentes, pressionando a sustentabilidade do setor. Não é coincidência que, em 2023, a UnitedHealth – maior grupo de saúde dos Estados Unidos – tenha decidido vender integralmente sua participação na Amil, absorvendo perdas bilionárias. O episódio ilustra o quanto a instabilidade regulatória pode afastar players internacionais relevantes, reduzindo a competição e o capital investido no sistema.
A proteção ao consumidor de planos de saúde é um objetivo legítimo e necessário. Mas o caminho da intervenção direta na precificação deixou marcas dolorosas na história brasileira. O caso Varig e o setor sucroalcooleiro demonstram que o tabelamento gera passivos indenizatórios; a experiência das concessões rodoviárias evidencia que limites artificiais à rentabilidade afastam investimentos.
A ANS tem diante de si a tarefa complexa de equilibrar interesses de consumidores, operadoras e prestadores. Para tanto, precisa evitar atalhos regulatórios que, embora populares no curto prazo, podem comprometer a sustentabilidade do sistema no longo prazo — e, quiçá, expor o erário a novos passivos bilionários.

