Quando o Brasil olha para o espelho, vê uma maioria de pessoas negras. Mas, ao entrar em muitos órgãos da administração pública federal, a imagem refletida ainda é outra. Esse descompasso não é apenas simbólico: ele afeta a capacidade do Estado de diagnosticar problemas, desenhar soluções e entregar políticas públicas que realmente cheguem a quem mais precisa.
A promulgação da Lei 12.990/2014, conhecida como Lei de Cotas, foi um marco na luta por um Estado brasileiro mais representativo. Ao estabelecer a reserva de 20% das vagas em concursos públicos federais para pessoas negras, a legislação buscou combater uma discrepância histórica: embora 56% da população brasileira se declare negra (parda ou preta), esse grupo ocupava, até recentemente, cerca de 40% dos cargos no Executivo federal.
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Recentemente, a norma foi atualizada com a promulgação da Lei 15.142/2025, que ampliou não só o percentual de reserva de vagas – de 20% para 30% –, mas também incluiu pessoas indígenas e quilombolas como beneficiárias da política.
Contudo, uma lei, por si só, não garante sua efetividade. A implementação de uma política pública é um processo complexo, mediado por pessoas – a burocracia do Estado. E é aqui que reside uma questão fundamental, explorada na dissertação de mestrado intitulada Burocracia Representativa e Desempenho de Políticas Públicas: Efeitos da Representação Racial na Implementação da Lei de Cotas em Concursos Públicos, qual seja: a composição racial da burocracia influencia o sucesso de uma política desenhada para reduzir desigualdades?
Na pesquisa, foram utilizados dados administrativos do serviço público federal brasileiro para analisar os efeitos da composição racial prévia da burocracia na implementação da Lei 12.990/2014. A análise foi organizada em três etapas distintas. Inicialmente, foi empregada uma abordagem transversal para comparar exclusivamente os órgãos que realizaram concursos, buscando avaliar sua conformidade com a ação afirmativa.
Em seguida, foram realizadas duas análises de diferenças em diferenças: a primeira considerando apenas dois períodos para cada órgão (antes e depois da implementação da Lei de Cotas), e a segunda utilizando dados anuais de cada órgão.
A resposta à questão fundamental da pesquisa é bastante interessante e cheia de nuances. Em primeiro lugar, embora não tenha sido o foco do estudo, a realização de concursos públicos está positivamente associada com a ampliação da representatividade racial na administração pública federa. Em segundo lugar, sim, a diversidade racial da força de trabalho nos órgãos públicos analisados importa, mas seu impacto varia dependendo do nível hierárquico em que se encontra. Em suma, pode-se afirmar que diversidade racial não é adereço – é propulsor de desempenho.
O argumento central é simples, embora suas implicações sejam profundas. Quando a burocracia se aproxima da composição da sociedade, ganha-se informação de qualidade sobre realidades que nem sempre cabem nos formulários, normas e rotinas neutras. É essa informação – vivida, situada – que ajuda a calibrar normas, editais, critérios de seleção, interfaces digitais, protocolos de atendimento e de segurança pública e, depois, a própria priorização orçamentária.
Em outras palavras, a presença de pessoas negras não muda apenas o retrato das instituições; muda a conversa dentro delas, o que por sua vez muda escolhas e resultados. Isso é o que indicam pesquisas da denominada teoria da burocracia representativa, impulsionada por J. Donald Kingsley em um estudo de 1944 sobre o serviço público civil britânico. A burocracia representativa é comumente entendida como uma burocracia que representa grupos sociais específicos de uma população como um todo, especialmente mulheres ou pessoas de diferentes grupos raciais ou étnicos.
Por aqui, no Brasil, a pesquisa mostra que, nos órgãos em que já havia uma presença mais significativa de servidores efetivos negros antes da Lei de Cotas, houve também maior proporção de pessoas negras ingressando no serviço público após a lei.
Essa relação, estimada com estratégias analíticas que combinam uma comparação entre órgãos que realizaram concursos e dois modelos de diferenças‑em‑diferenças (um com dois períodos – antes e depois da lei – e outro anual por órgão), aponta para um mecanismo relevante: quando há diversidade na base da burocracia, os resultados da política pública tendem a ser potencializados.
Não porque “cor puxe cor” por favoritismo, mas porque a implementação ganha enraizamento. Ainda que isso não tenha sido esmiuçado na pesquisa, podem ocorrer exemplos como: comissões organizadoras ficarem mais atentas a vieses, editais serem melhor comunicados, áreas‑meio tratarem gargalos que de outra forma passariam despercebidos, e as rotinas de trabalho integrarem perspectivas que enriqueçam o processo decisório.
Há, porém, um achado que merece atenção e humildade analítica: a maior presença de pessoas negras em cargos de média e alta gestão apareceu associada, nos dados, a um efeito negativo inesperado sobre a implementação da lei. Esse resultado não autoriza conclusões apressadas, mas lança luz sobre algo conhecido no debate internacional: representação passiva (o “ser”) em chefias não se traduz automaticamente em representação ativa (o “fazer”).
Dependendo de como são feitas as nomeações, do grau de autonomia decisória, do desenho das carreiras e da cultura organizacional, pode haver situações em que a presença em posições de comando não vem acompanhada de poder real para ajustar rotinas, blindar decisões de curto‑prazo ou enfrentar resistências difusas. Em termos práticos, o dado nos convida a olhar para governança, incentivos e responsabilização: quem decide o quê, com base em quais métricas, em quais prazos, e com quais salvaguardas institucionais.
O período de implementação da Lei de Cotas coincidiu com uma profunda turbulência política e um sistemático desmonte da agenda de igualdade racial no governo federal. A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), por exemplo, foi sucessivamente fundida e subordinada a pastas maiores, perdendo status, orçamento e capacidade de influência. Narrativas que negavam a existência do racismo estrutural ganharam espaço no alto escalão.
Neste cenário, é plausível supor que os ocupantes de cargos de confiança, mesmo aqueles pertencentes ao grupo racial beneficiado pela política, estivessem submetidos a uma pressão institucional contrária. Sua nomeação e permanência estavam, muitas vezes, condicionadas à adesão à agenda política dominante, que priorizava o esvaziamento de tais políticas. Eles podiam ser “representantes passivos” por sua identidade racial, mas foram coercitivamente alinhados a uma “ação ativa” contrária aos interesses dessa mesma identidade, por força de lealdade à cúpula do governo.
Este é um alerta crucial para a gestão de pessoas: a diversidade isolada não é suficiente. De que adianta ter líderes diversos se a estrutura de poder, os incentivos e a cultura organizacional punem ou neutralizam a sua capacidade de agir em prol daqueles que representam? A representatividade na liderança só se torna efetiva quando inserida em um ambiente institucional que verdadeiramente valorize a equidade como um objetivo estratégico.
É importante destacar o contexto mais amplo. Segundo o Censo 2022, pessoas negras somam a maioria da população brasileira; e, entre 2013 e 2023, a proporção de servidores civis negros no Executivo federal passou de 34% para cerca de 40%. Ainda assim, persiste uma distância evidente entre a sociedade e a burocracia, e a velocidade de convergência é baixa.
Se o que está em jogo é a efetividade de políticas que visam reduzir desigualdades, essa distância custa caro. Instituições homogêneas tendem a errar mais sobre a vida de quem mais precisa do Estado; perdem o termômetro acerca das necessidades e barreiras invisíveis que só aparecem quando múltiplas experiências são, de fato, consideradas.
É nesse ponto que a discussão sobre “meritocracia” costuma surgir. A objeção é conhecida: não deveríamos abrir mão do mérito. Mas equidade e mérito não são rivais; são complementares. Concursos e seleções que medem as competências relevantes para o trabalho – e não marcadores socioeconômicos indiretos – ampliam o universo de candidatos qualificados sem rebaixar padrões.
A Lei de Cotas, ao reservar uma fração das vagas, não elimina a competição, apenas corrige uma assimetria histórica de oportunidades de acesso. Depois do ingresso, se queremos meritocracia de verdade, precisamos de condições de desenvolvimento e progressão que sejam, também elas, equitativas: mentorias, trilhas formativas, avaliações justas, critérios transparentes para funções de confiança, canais eficazes de prevenção e enfrentamento ao racismo, assédio e à discriminação.
Do ponto de vista gerencial, a lição da pesquisa é pragmática. A diversidade racial funciona como uma política de melhoria de processo: reduz vieses de desenho, diminui retrabalho, antecipa riscos que costumam aparecer tarde demais, melhora a comunicação com públicos‑alvo e, por fim, aumenta a probabilidade de alcance e sustentabilidade de resultados.
Órgãos que incorporam essa agenda com seriedade mudam rotinas aparentemente menores – a linguagem de um edital, a simplicidade de uma interface, o horário de um atendimento, o requisito documental que se revelava desproporcional – e colhem ganhos grandes ao longo do ciclo de política pública. Não se trata de mera política com viés identitário, mas de gerir riscos e custos com inteligência institucional.
Também não se trata de esperar que a diversidade “se resolva sozinha”. Representação precisa virar rotina, e rotina precisa de bússola. Vale mais ter poucos indicadores, acompanhados com disciplina, do que uma coleção de métricas raramente usadas.
Composição por raça/cor por carreira e nível; tempo médio até a primeira função de confiança, por recorte racial; acesso e conclusão de trilhas de desenvolvimento; participação em bancas e comissões; satisfação no trabalho e percepção de segurança psicológica; taxa de denúncias e resolução de casos – todos esses são termômetros possíveis que ajudam a transformar intenção em gestão. O que realmente muda o jogo é o hábito institucional de medir, discutir com quem executa e corrigir rápido.
Se a presença de pessoas negras na base tende a facilitar a implementação de políticas de diversidade, como indica a dissertação citada acima, então uma agenda consequente passa por fortalecer a representação onde ela faz diferença concreta: em equipes técnicas, em comissões e bancas, nos processos que definem e executam concursos, e na cultura cotidiana das unidades.
Ao mesmo tempo, é preciso que a presença em posições de comando venha acompanhada de mandato claro, autonomia compatível e accountability, para que a representação em chefias não se resuma a gesto simbólico ou à prática que, na academia, é denominada tokenismo.
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O caminho é exigente, mas não é nebuloso. Estabelecer metas realistas e públicas; revisar editais com foco em competências e em barreiras desproporcionais; diversificar canais de divulgação; preparar bancas; acolher e formar de modo contínuo; criar redes de mentoria; proteger quem denuncia discriminação; dar voz a comitês de diversidade com mandato e metas; e, sobretudo, organizar a casa para que cada decisão de gestão de pessoas – do recrutamento à nomeação para funções de confiança – responda a uma pergunta simples: esta prática aproxima ou afasta a burocracia do Brasil real?
Ao final, o que está em jogo não é um ideal abstrato de representatividade. É a capacidade do Estado de produzir políticas públicas que funcionam – que chegam, permanecem e transformam. A diversidade racial na administração pública federal é, nesse sentido, uma estratégia de Estado para a redução de desigualdades.
Tratar essa agenda como algo “acessório” ou “tendência da vez” é desperdiçar informação, tempo e recursos; tratá‑la como centro de gestão é apostar em decisões melhores, execução mais responsiva e resultados que importam. Quando o Estado se parece com o Brasil, a política pública funciona melhor – e a democracia, também.