À medida que avança a implementação do novo Marco Legal do Saneamento, os debates sobre a regionalização dos serviços públicos ganharam contornos mais precisos – e complexos. Com a promulgação da Lei 14.026/2020, que atualizou o marco legal do setor, o legislador federal conferiu centralidade à chamada “prestação regionalizada” como ferramenta de viabilização da universalização dos serviços até 2033.
Mas, se o papel das regiões metropolitanas e microrregiões está razoavelmente claro, a função das Regiões Integradas de Desenvolvimento Econômico (RIDEs) no novo arranjo federativo ainda levanta dúvidas práticas. Uma delas: seria necessário o consentimento dos municípios de uma RIDE para integrá-los a uma microrregião estadual de saneamento?
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A pergunta parece técnica, mas revela algo maior. O novo Marco Legal do Saneamento é, em muitos aspectos, um projeto de engenharia federativa. Ele reorganiza a titularidade, obriga o planejamento conjunto e requalifica a regulação como ferramenta de indução ao investimento. Nesse contexto, a confusão entre o papel das RIDEs e o das microrregiões pode levar a equívocos jurídicos e, pior, a entraves institucionais para um setor historicamente marcado por fragmentação e subinvestimento.
As RIDEs, instituídas por lei complementar federal com base nos artigos 21, IX, e 43 da Constituição, são instrumentos de articulação regional entre estados e municípios com interesses comuns, como infraestrutura, mobilidade e desenvolvimento urbano. Seu caráter federativo é inequívoco, mas suas competências não são exclusivas nem automáticas. Diferentemente das microrregiões estaduais, previstas no artigo 25, §3º da Constituição, as RIDEs não impõem a prestação regionalizada – apenas a viabilizam se os entes assim decidirem, de modo consensual.
Essa diferença não é apenas normativa. Ela foi reconhecida pelo próprio legislador infralegal no Decreto 11.599/2023, que regulamenta a prestação regionalizada e condiciona expressamente sua realização no âmbito das RIDEs à “anuência dos municípios que as integram” (artigo 6º, §3º). Em outras palavras: a regionalização dentro da RIDE depende de acordo político.
Já as microrregiões estaduais, criadas por lei complementar com base em estudos técnicos e audiências públicas, vinculam de modo compulsório os municípios que as integram – desde que respeitado o modelo de governança interfederativa exigido pelo Estatuto da Metrópole (Lei 13.089/2015).
Tal modelo foi validado diversas vezes pelo Supremo Tribunal Federal (STF). No julgamento da ADI 1.842/RJ, por exemplo, a Corte assentou que a integração dos municípios à estrutura regional instituída por lei complementar estadual é compulsória, desde que garantida a participação dos entes federados na governança da nova entidade.
Segundo o STF, esse arranjo não fere a autonomia municipal, mas sim a concretiza no plano cooperativo. Recentemente, nas ADIs 6.573/AL e 6.911/AL, o tribunal reafirmou que a ausência de conurbação entre os municípios não impede a formação de uma unidade regional para o saneamento, desde que se trate de função pública de interesse comum.
Esse ponto é decisivo. O novo Marco do Saneamento não exige integração prévia para a constituição da microrregião, nem condiciona a adesão à vontade individual dos municípios. O que se exige é um processo legítimo de estruturação regional, com estudos técnicos, escuta social e a criação de uma governança compartilhada. O resto é resistência travestida de prerrogativa constitucional.
As RIDEs continuam sendo arranjos relevantes para o planejamento intergovernamental. Mas sua função deve ser compreendida nos termos em que foram concebidas: como espaços de cooperação, e não de titularidade. Não cabe às RIDEs autorizar ou vetar a regionalização prevista em lei estadual. Se a microrregião for instituída conforme os requisitos da Constituição e do Estatuto da Metrópole, os municípios integrantes têm a obrigação de se vincular à nova estrutura.
O desafio, portanto, não está em sobrepor um modelo ao outro, mas em entender o papel de cada um no mosaico federativo. A regionalização do saneamento exige precisão institucional: o mapa não pode se confundir com o território.
Se cada arranjo cumpre um papel distinto – um voltado à cooperação ampla e outro à titularidade compartilhada –, é a clareza sobre essa diferença que permite uma governança eficiente, capaz de atrair investimentos e garantir a universalização do serviço até 2033. Qualquer ambiguidade nesse percurso pode custar caro demais.