Os fundos de investimento têm até esta segunda-feira (30/6) para se adequarem à Resolução 175 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). A nova norma, que substitui uma série de instruções anteriores e consolida o regime dos fundos de investimento, entra agora em sua fase final de transição após um processo marcado por idas e vindas, dúvidas operacionais e múltiplas orientações complementares emitidas pela autarquia.
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Antes, o regime de fundos no Brasil era regido por um conjunto de instruções fragmentadas, como a Instrução CVM 555, a 356, a 472 e outras. Assim, cada tipo de fundo tinha regras próprias para governança e prestação de serviços. Agora, a norma busca dar maior clareza, segurança jurídica e flexibilidade à indústria. No modelo “modular” da 175, há um núcleo comum de regras para todos os fundos e anexos com regras específicas conforme o tipo de produto.
No entanto, batendo à porta do fim do prazo de transição, o mercado ainda enfrenta dificuldades de operacionalização e dúvidas quanto ao novo marco. A menos de 15 dias do prazo final de adaptação, 69% dos fundos de investimento estavam adaptados ou em processo de adaptação à regra, segundo o Radar 175, da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima).
Muitos gestores, especialmente os de pequeno e médio porte, enfrentam dificuldades para adaptar seus sistemas e processos operacionais às novas exigências, como as que envolvem subclasses, detalhamento de taxas, e governança ampliada nos fundos estruturados. Segundo relatório da Fitch Ratings, a estrutura mais flexível da 175 exige maior robustez contratual e tecnológica, e muitas casas menores não têm recursos para se adequar às novas exigências sem onerar a operação.
A corrida na implementação também se deve às idas e vindas da autarquia. Após a publicação da 175, houve a publicação de uma série de ofícios circulares, muitas vezes alterando o último regramento divulgado. “O processo foi feito de forma bem atabalhoada. Para alguns aspectos, como o das taxas, não houve estudo de impacto regulatório adequado”, segundo Júlia Franco, sócia do Cescon Barrieu Advogados. “A proposta inicial da norma era só regulamentar o que veio com a Lei da Liberdade Econômica. Mas ela foi crescendo, crescendo, e acabou abraçando tudo. É um movimento interessante, mas que naturalmente traz desafios.”
No processo de ampliar o escopo da reforma, houve mais ruídos. “A gente teve superintendências com entendimentos diferentes sobre se os custos de adaptação podiam ser arcados pelo fundo, por exemplo. Começou com a Lei de Liberdade Econômica, e virou uma revolução”, completa Frederico Calmon, também sócio do Cescon Barrieu. Em alguns casos, esse desalinhamento levou gestores a postergar decisões, com receio de penalizações, o que acabou também atrasando a adaptação, afirma.
“Muitas questões vieram da Lei de Liberdade Econômica, que poderiam ter sido melhor endereçadas, e o regulador trabalhou com isso. Certamente uma iniciativa para simplificação e consolidação seria louvável e importante, mas acho que é uma questão de oportunidade”, diz André Mileski, sócio da prática de Fundos de Investimento do Lefosse. “Mas isso sempre vai estar presente, porque é um assunto muito vivo, com pontos que precisam de aprimoramento e esclarecimento.”
Gestores
Um dos efeitos da Resolução 175 é a mudança na expectativa regulatória quanto à postura dos gestores de fundos. Antes, o administrador fiduciário era o principal responsável pela integridade do fundo, cuidando do cumprimento das regras, da contratação de prestadores, e muitas vezes da verificação de ativos e cálculo de cotas. O gestor se concentrava na política de investimentos, com menos obrigações de governança e diligência formal.
A nova resolução propõe um modelo mais flexível e contratualista: gestor e administrador podem negociar entre si e definir com mais clareza suas responsabilidades no regulamento. O administrador segue como garantidor do cumprimento da norma, mas pode delegar diversas funções. Com isso, o gestor passa a ter maior protagonismo e poder de decisão sobre aspectos operacionais, mas com isso assume mais responsabilidade fiduciária e técnica.
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“Na prática, o gestor já era quem tomava as decisões de investimento e estruturava os produtos, mesmo que o administrador tivesse a responsabilidade formal. A 175 só positivou isso, e exigiu que as responsabilidades fiquem claras no contrato entre as partes”, diz Gabriela Codorniz, sócia fundadora de Gabriela Codorniz Advocacia Empresarial e ex-Chefe de Gabinete da Presidência da CVM.
Nos Fundos de Investimento de Direitos Creditórios (FIDCs), por exemplo, antes era obrigatório que o administrador fizesse a verificação de lastro dos direitos creditórios. Com a 175, essa função pode ser atribuída a um terceiro, desde que o gestor e o administrador concordem com isso contratualmente, e que o prestador seja supervisionado. “A CVM deu mais liberdade para os gestores, mas todo o bônus vem com um ônus. Se o gestor tiver poder para montar estruturas mais complexas, ele também terá que responder por elas. Isso vai exigir mais deles”, diz André Mileski, sócio da prática de Fundos de Investimento do Lefosse.
Subclasses
Além disso, o papel do gestor se amplia com os fundos com subclasses, por exemplo. Antes da resolução, não havia previsão expressa para a existência de subclasses de cotas dentro de uma mesma classe nos fundos de investimento. Quando um gestor queria oferecer o mesmo fundo com condições diferenciadas para investidores distintos (por exemplo, prazos de resgate ou taxas menores para aplicadores maiores), ele tinha que criar fundos espelho (fundos que investem em outro fundo), por exemplo. Esse uso de estruturas alternativas aumentava os custos operacionais e de compliance.
Agora, o marco passa a permitir formalmente a criação de subclasses de cotas dentro de uma mesma classe. Cada subclasse pode ter taxas de administração distintas, prazos de resgate diferenciados, política própria de distribuição de rendimentos, etc. Assim, cada classe pode ter CNPJ próprio, o que permite segregação patrimonial mais clara. A exigência é que as regras sejam transparentes e constem no regulamento, e que a isonomia seja mantida dentro de cada subclasse.
Um arranjo comum em mercados mais sofisticados como EUA e Europa, essa estrutura permite maior personalização de produtos com ganhos de escala e menor custo regulatório. Por outro lado, exige do gestor capacidade para tratar investidores distintos com regras distintas, sem comprometer o princípio da isonomia. Além disso, a segmentação patrimonial por classes implica que o gestor monitore riscos e alavancagens separadamente, mesmo dentro de um mesmo fundo.
Na prática, poucos fundos adotaram o modelo até agora, segundo agentes do mercado ouvidos pelo JOTA. “No início, havia uma insegurança tributária. O fisco não enxergava a tributação em cima de cada patrimônio separado da classe, e isso gerou um problema imediato, porque se você tributa o fundo como entidade única, você não tem a separação patrimonial necessária. Isso foi corrigido ao longo do caminho da adaptação”, diz Frederico Calmon, do Cescon. “Mas do ponto de vista de custo, você ainda manteve os mesmos, tanto no caso de separar duas classes ou de eventualmente ter dois fundos diferentes. Cada classe precisa da sua demonstração financeira separada, todas pagam taxa de fiscalização segregadas também. Por isso que as pessoas não veem vantagem hoje, na grande maioria dos casos, em você ter mais de uma classe.”
Responsabilidade e insolvência
A Resolução 175 também incorporou à regulação de fundos brasileiros a possibilidade de limitação expressa da responsabilidade dos cotistas, uma inovação alinhada à Lei da Liberdade Econômica e aos modelos societários tradicionais, como as sociedades por ações. A ideia era permitir que investidores comprometessem apenas o capital aportado, sem risco de serem chamados a aportar valores adicionais caso o fundo se tornasse insolvente.
Na prática, no entanto, essa proteção tem sido pouco utilizada. A própria CVM, em entrevista ao jornal Valor Econômico, reconheceu que o instrumento é “teórico” e que o objetivo foi garantir liberdade de estruturação. “Mas sabemos que dificilmente haverá adesão ampla, especialmente no varejo”, disse o presidente da autarquia, João Pedro Nascimento.
Em muitos Fundos de Investimento em Participações (FIPs), que geralmente investem em empresas com maior risco trabalhista, fiscal ou ambiental, gestores e administradores optaram por não declarar formalmente a limitação da responsabilidade dos cotistas, diz Frederico Calmon, do Cescon. Isso ocorre porque, como ainda não há um regime claro e testado para lidar com a falência de fundos, prevalece o receio de que, em uma situação de crise, o patrimônio dos cotistas possa acabar sendo atingido, ou que gestores e administradores sejam responsabilizados diretamente.
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“Se o fundo fica insolvente, e não há como chamar capital adicional dos cotistas, quem assume o prejuízo? O administrador? O gestor?”, questiona Calmon. “Era para ser uma inovação que daria mais segurança ao cotista, mas, por causa da incerteza sobre o que acontece se o fundo quebra, o investidor acaba não tendo essa proteção na prática”, afirma Calmon.
Além disso, no caso de fundos com subclasses, apesar da previsão de CNPJs distintos para cada classe, como mecanismo de proteção patrimonial, ainda não há experiência que confirme a eficácia dessa separação em caso de execução judicial ou falência. “A gente não sabe como isso vai ser tratado, se uma classe tiver um passivo e não tiver dinheiro para pagar. Será que vão atrás das outras classes? Isso é uma sombra, é uma incerteza jurídica”, diz Gabriela Codorniz.
O tema ebarra em outro ponto sensível, a introdução de mecanismos de insolvência para fundos. Júlia Franco, do Barrieu, destaca que a insolvência é um instituto tradicionalmente aplicado a pessoas físicas. “Tem toda uma discussão se o fundo tem ou não personalidade jurídica, porque isso acaba tendo um impacto tributário. Mas eu acho, sinceramente, que já está algo superado. Está muito claro pra todo mundo que fundo é diferente, tem uma natureza única, específica, é um condomínio especial.”
O ponto da insolvência ainda pode ser alterado pelo PL 2.130/2023, em tramitação na Câmara dos Deputados. O texto, além de estabelecer que o regime de insolvência civil seja aplicado a cada classe de cotas e estabelecer que a tributação sobre cotistas seja definida por classe de cota, acompanhando a separação patrimonial, prevê uma espécie de aplicação limitada do regime falimentar às classes de cotas, em substituição ao regime civil, o que poderia trazer maior segurança jurídica para a estruturação de fundos.
Por outro lado, para Franco, a CVM trabalhou “muito bem” a prevenção ao problema, com um arcabouço robusto para evitar o estado de insolvência. “A regulamentação apertou bastante, tanto pro gestor quanto administrador, controles, notificações e esse dever prévio, para que a gente não chegue nessa etapa em que a gente realmente não sabe o que vai acontecer, como o Judiciário vai lidar com essa questão.”
Incertezas e judicialização
Na entrevista ao Valor, João Pedro Nascimento afirmou que a CVM está atenta à necessidade de educação e orientação sobre a resolução após o prazo, mas que não haverá prorrogação do tempo. “Houve tempo adequado, inclusive com participação do mercado”, disse. Para Gabriela Codorniz, o momento lembra o da criação do Formulário de Referência, documento exigido pela autarquia sobre emissores de valores mobiliário desde 2010.
“A CVM adotou no começo, nos primeiros anos, uma postura mais instrutiva do que sancionatória. Hoje a posição tem que ser essa também”, diz. “É uma super evolução, mas como toda grande mudança regulatória, ela precisa de acompanhamento, de revisão. E de uma atuação coordenada das instituições que regulam o sistema”, diz Gabriela Codorniz.
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Com as sombras das incertezas jurídicas, o futuro também pode guardar judicialização, diz Frederico Calmon. Ele explica que em muitos fundos, especialmente estruturados, como FIPs, havia regras contratuais específicas, como quóruns de deliberação. Se essas regras foram alteradas na adaptação, sem passar por assembleia, isso pode gerar disputas judiciais. Além disso, a nova norma permitiu limitar a responsabilidade do administrador e do gestor. Mas se o regulamento anterior previa solidariedade, não se pode mudar isso unilateralmente.
“A gente ainda vai sofrer vários processos de judicialização de questões que não ficaram claras nesse regime de transição que vão ter que ser resolvidas por um juiz ou uma arbitragem, dependendo do tipo de cláusula”, diz Calmon. “Isso poderia ter sido evitado com uma melhor preparação regulatória e com avaliação de impacto”, acrescenta Júlia Franco.