Na manhã do dia 28 de maio, o Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz), em Brasília, recebeu autoridades de todo o país para o lançamento do livro Solidariedade Fiscal: desmistificando o nível de tributação e seu impacto no crescimento econômico. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, secretários da Fazenda dos estados, coordenadores do Confaz, integrantes do Grupo de Trabalho 66 (GT-66) e outras lideranças do setor fiscal, compareceram ao evento e reafirmaram o compromisso com o debate público sobre a tributação no Brasil.
A solenidade, além de celebrar o lançamento da obra como um marco na luta pela ética fiscal, também evidenciou o compromisso institucional com a formulação de políticas públicas baseadas em indicadores qualificados, dados comparativos realistas e solidariedade cidadã. Em um momento de transposição da mudança do arcabouço fiscal no Brasil, com a implementação da reforma tributária prevista pela PEC 45/2019, o evento elucidou a urgência de promover a educação fiscal como ferramenta essencial para a construção de um sistema tributário mais justo e compreendido pela população.

Por trás das manchetes sobre a reforma tributária e da ideia disseminada de que o Brasil é um dos países que mais cobra impostos no mundo, existe um cenário mais complexo — e frequentemente mal interpretado. Foi para aprofundar o entendimento sobre esse debate que surgiu o livro Solidariedade Fiscal, escrito pelo economista e doutor em política tributária, Pedro Humberto Carvalho, pela engenheira civil e especialista em tributação municipal imobiliária, Cláudia M. De Cesare e pelo economista e PhD em administração pública, Alexandre Cialdini. A obra desfaz clichês arraigados, propõe novos critérios de análise e convida o leitor a repensar o papel dos tributos na construção de uma sociedade menos desigual.
Na entrevista a seguir, os autores comentam as motivações por trás do estudo, revelam as descobertas mais surpreendentes e explicam o que significa, afinal, enxergar a arrecadação tributária como um ato de solidariedade.
O livro poderá ser comprado em livrarias físicas e no site da editora Contracorrente.
1.O que motivou a realização dessa pesquisa?
Pedro Humberto (P.H.): Este livro foi desenvolvido com base no debate da reforma tributária, em que tem se feito muitas comparações internacionais. Geralmente essas conexões são viesadas no sentido de que no Brasil a arrecadação é alta, que temos que reduzir os encargos da folha de pagamento dos cargos patronais, reduzir as tributações de consumo — que realmente contatou-se no livro que estão elevadas no Brasil. Mas também identificamos certas falácias, como no Imposto de Renda, que, na verdade, a arrecadação no Brasil é baixa; as contribuições sociais estão no mesmo nível de outros países que têm sistema de seguridade social universal, por exemplo: na América Latina, identificamos que apenas a Argentina, o Uruguai, o Brasil e a Costa Rica têm sistema público de previdência.
Em outros países, quando o cidadão é idoso, o governo oferece uma espécie de “Bolsa Família” de 50 dólares ou 100 dólares. São benefícios assistenciais de baixo valor porque eles não têm previdência. Acabamos fazendo comparações entre Brasil e Peru, Brasil e Bolívia, em termos de arrecadação (outros países de renda média têm arrecadação menor). Também analisamos o indicador de arrecadação per capita, que é o quanto o Estado tem com recursos para gastar com cada cidadão. No Brasil, por ter uma população muito alta, esse indicador ficou lá embaixo.
Alexandre Cialdini (A.C.): Uma pergunta interessante, importante, porque como nós militamos na composição na área de finanças públicas e na administração das políticas públicas, esse trabalho trouxe para a gente uma oportunidade onde pudemos avaliar a composição de variáveis macroeconômicas de 126 países. Fizemos a composição de análise de variáveis de finanças públicas tradicionais, ou seja, receita tributária e gastos, e uma avaliação sobre causalidade e correlação dessas variáveis com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), com o PIB per capita e com o PIB real.
O que também é interessante é que, em toda pesquisa, são estabelecidos um caminho e uma meta; no decorrer desse caminho, fomos percebendo que poderíamos explorar outras áreas que até então não eram exploradas no campo das finanças públicas. Então, isso também nos motivou. Ou seja, a carga tributária no Brasil é alta? Depende. Ela é desigual, porque o Brasil nunca tributou — praticamente — rendimentos de capital (juros), mas tributou fortemente o consumo (bens e serviços). Enquanto isso, outros países tributaram de forma elevada a tributação patrimonial. Tanto que nessa trajetória vimos que a média de tributação de bens patrimoniais no Brasil é 0,5% e, em países desenvolvidos, ela chega a 3,4%, 3,5%. A trajetória da pesquisa nos levou a querer entender se é realidade o que é dito no meio comum, no dia a dia pelas pessoas. Então, tivemos o cuidado para não comparar cargas tributárias onde há muita informalidade e chegamos à seguinte conclusão: o Brasil tem uma largada em informalidade — com cerca de 38 milhões de informais —, e uma parte desses informais não têm efeito contributivo [na arrecadação tributária]. Isso propiciou que nós, nessa trajetória de pesquisa e escrita, fizéssemos uma série de análises que até então não tinham sido exploradas.
Outra coisa: essa pesquisa abre espaço para analisar os municípios. Porque, no contexto da reforma tributária, onde essa reforma vem só focalizada no consumo, nós temos um espaço enorme para poder fazer com que os municípios compreendam a importância de eles também fazerem um esforço fiscal. A partir do princípio de que o consumo acontecerá no seu destino e não na produção, vamos ter uma oportunidade de disseminar melhor o conceito do livro: solidariedade fiscal. E, por meio disso, estimular, inclusive, a educação fiscal e a [análise da] qualidade do gasto. Joseph Stiglitz [economista internacionalista estadunidense] tem uma frase que eu gosto muito: “O que a sociedade quer dos governos? Eficiência e transparência.” E é por esse caminho que o livro aponta.
Cláudia De Cesare (C.C.): Recebemos um convite do Comsefaz para desenvolver uma análise internacional comparativa, com foco na ideia de solidariedade fiscal — um termo que já havia sido proposto pela própria instituição. Foi, portanto, um insight muito relevante, que nos motivou a aprofundar esse olhar analítico sobre o sistema tributário brasileiro em comparação com outros países.
2.Qual sua opinião sobre os gastos dos impostos arrecadados?
P.H.: No gasto, há grandes oportunidades de melhorias. O gasto com os juros é uma rubrica importante, já que chega a ser 15% do gasto público, enquanto em outros países esse percentual é menor. Temos um dos maiores índices absolutos, inclusive per capita; o gasto dos juros per capita é muito alto. Além disso, o gasto em transportes no Brasil é baixo comparado a outros países.
C.C.: Verificamos em termos de gastos, em pouco o que já vem sendo divulgado corretamente na mídia: temos um alto percentual de gastos para o pagamento dos juros [da dívida externa]. Isso faz com que limite o gasto que conseguimos ter em outros setores. Em relação ao pagamento de juros, mesmo em termos per capita utilizando dólares internacionais, a nossa arrecadação é maior do que a das economias avançadas. Então, obviamente que isso acaba comprometendo bastante. Em um país como o nosso, com desigualdade social, obviamente que todos os gastos sociais são bem-vindos; e acho que não é apenas sobre ter gastos progressivos, mas sobre ter uma tributação mais progressiva, porque é isso que vai mudar a nossa realidade.
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3. Como a economia informal impacta a interpretação da carga tributária?
P.H.: Esse foi outro indicador considerado, partimos de um estudo do Banco Mundial sobre o peso do setor informal da economia, e no Brasil o setor informal é muito mais alto do que em países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], por exemplo. Então, uma análise da arrecadação pelo PIB oficial brasileiro é subdimensionado — isso eleva o indicador, quando na verdade ele poderia ser reduzido de 33% para 24% do PIB real. Países da OCDE e da Europa têm mais ou menos 15% do PIB relativo ao setor informal. Segundo o Banco Mundial, no Brasil essa porcentagem seria de 33%; por mais que se questione a magnitude desses indicadores, é evidente que na Europa Ocidental, nos países da OCDE, [a economia informal] é bem menor do que no Brasil. Então, essa diferença da arrecadação tende a ser maior.
3.1. E como você acha que poderíamos formalizar e englobar essa informalidade no PIB oficial?
P.H.: O IBGE estima que cerca de 10% do PIB oficial seja proveniente da economia informal. No entanto, todos os países apresentam alguma discrepância nesse sentido, pois nunca será possível captar 100% da produção de renda. O setor informal é um desafio permanente na contabilidade nacional, mas, no caso do Brasil, é significativamente maior do que nos países de alta renda. Por isso, ao compararmos a arrecadação tributária brasileira com a desses países, é preciso ter cautela — mesmo em termos per capita. A população de Portugal, por exemplo, é de cerca de 10 milhões de habitantes; a da Nova Zelândia, de aproximadamente 5 milhões — números muito inferiores aos mais de 200 milhões de habitantes do Brasil, que também apresenta uma elevada taxa de informalidade. É por isso que os indicadores, quando comparamos o Brasil com os países da OCDE, não podem ser interpretados da mesma forma, já que as realidades são completamente diferentes.
10 4. Quais os dados mais surpreendentes o estudo revelou?
P.H.: Um dado que eu não esperava foi quando eu analisei o sistema de seguridade social dos países da América Latina, que são realmente bastante excludentes. Se, durante toda a sua vida, você aporta recursos para o fundo privado, você fica totalmente marginalizado — o que não acontece no Brasil. E é por isso que a nossa arrecadação tributária é alta, porque nós temos contribuições sociais, a gente tem que financiar esse sistema.
Além disso, constatamos que a arrecadação não interfere no crescimento econômico: existem países com uma tributação baixíssima, como os tigres asiáticos do sudeste asiático, que têm um crescimento econômico alto por muito tempo; e existem países, como Portugal, Espanha, países da Europa Oriental, que saíram do comunismo e tiveram um crescimento econômico comparado na inclusão social, em contribuições sociais, e agora são economias avançadas, com alto IDH e alta renda.
C.C.: Não que tenha sido uma surpresa, mas para mim o que foi mais interessante foi explorar esses diferentes indicadores e conseguir, com maior clareza, verificar os limites de cada um deles e como a gente pode chegar a conclusões distintas. Por exemplo, a nossa arrecadação per capita em dólares internacionais apresenta apenas 30% da média das economias avançadas, enquanto a carga tributária oficial pode ser semelhante a essas economias. O estudo nos deu a capacidade de verificar esses contrastes.
5. Na sua opinião, por que o Brasil mantém o mito da carga tributária alta?
C.C.: Em termos comparativos, não há evidência de que a nossa arrecadação tributária seja elevadíssima. Nós precisamos ter uma política de gastos sociais para combater o desafio imenso que é a desigualdade. Então, em países muito desiguais, nós precisamos investir bastante para entregar um nível mínimo de uma condição [de vida] razoável. Acredito que também seja uma falta de consciência, que tem a ver com o título do livro, com a palavra “solidariedade”. Então, tem aquela frase típica: “o indivíduo é o pior inimigo do cidadão”. São setores distintos, cada um desses setores quer maximizar sua vantagem através de isenções, de não contribuir com o gasto público. Ao meu ver, é uma falta de percepção. Se nós tivermos mais investimentos e uma sociedade mais justa, obviamente vamos aumentar o consumo e, portanto, ter mais desenvolvimento econômico. Acho que é um pouco aquela visão individualista, de não querer contribuir com o financiamento público. Aí vem justamente essa mudança de terminologia: ao invés de usar “carga tributária”, que parece um ônus, que parece um termo pejorativo, utilizar o termo “solidariedade fiscal” — neste termo está embutida essa visão de responsabilidade coletiva, a questão da capacidade contributiva, de fazer com que setores e indivíduos que possam mais contribuam mais. É uma guerra interna e coletiva sobre ser um indivíduo e ser um cidadão.
6. Quais as implicações políticas e econômicas das descobertas?
P.H.: As implicações na reforma tributária, eu creio que serão bastante importantes na reforma do Imposto de Renda (IR), que realmente a gente não tributa dividendo. Apenas poucos países, como Estônia, Letônia, Malásia e países dos Emirados Árabes não tributam dividendos — e o Brasil também entra nessas exceções. Apesar da alta desigualdade da renda, o nosso IR da pessoa física é amplamente focado no rendimento do trabalho assalariado. Então, esse projeto de lei que discute o imposto mínimo será muito importante e trará à luz, por exemplo, o argumento de que o IR da pessoa jurídica no Brasil, que tem uma alíquota pelo Lucro Real das empresas, é muito alto (34%) e, em vista disso, não se deve tributar dividendos. Mas nós fizemos uma análise dos países que tributam tanto a pessoa jurídica quanto os dividendos e [concluímos] que, apesar da nossa alíquota legislativa ser alta, a nossa arrecadação é baixa — quando comparada a outros países, ela está até abaixo da média. Ou seja, o gap tributário é alto: existe uma perda da arrecadação em virtude dos sistemas Simples, Lucro Presumido e, até mesmo, das deduções e dos incentivos fiscais.
A.C.: Espero que a gente possa, a partir da pesquisa, construir alguns módulos e influenciar em alguns marcos regulatórios, para que a gente possa incentivar a governança integrativa, a solidariedade social, o compartilhamento de bases de dados. Hoje não se justifica mais e, com a reforma [tributária] que está posta, nós precisamos ter uma única porta de entrada, uma única base de dados, que possa simplificar ao máximo para que o contribuinte visualize os gastos da arrecadação do Estado. A LRF [Lei de Responsabilidade Fiscal] já deu um grande avanço a partir de 2010, reformulando o artigo 45 [O Art. 45/ nº 101/2000 (LRF), estabelece normas sobre a inclusão de novos projetos em leis orçamentárias e créditos adicionais, exigindo que se atenda prioritariamente aos projetos em andamento e à conservação do patrimônio público], onde a gente encontra todas as despesas empenhadas, mas agora nós temos que não só falar sobre a dívida ativa, mas explicar o que é uma dívida ativa. E o livro abre essa oportunidade. A gente precisa fazer solidariedade fiscal com uma boa comunicação.
7. Como esperam que o livro seja recebido por formadores de opinião e gestores públicos?
C.C.: A nossa expectativa é que o livro venha desmistificar uma série de percepções, ou mesmo de afirmações que eram divulgadas pelos meios de comunicação. Algumas eram totalmente uma falácia, outras, talvez, tenham sido um problema de interpretação. Esperamos que os formadores de opinião tenham um conteúdo que consiga traduzir de uma forma melhor qual é a posição do país em relação a uma análise comparativa de questões fiscais no âmbito internacional. Buscamos trabalhar com diferentes indicadores e fazer uma crítica ao uso de cada um desses indicadores.
Cada indicador tem um determinado limitador, ele te mostra uma pequena parte da realidade; porém, muitas vezes, para utilizar aquele indicador, a gente tem que usar países que tenham características semelhantes, senão o indicador perde a validade. Foi isso que nós tentamos fazer. Então, iniciamos mostrando a arrecadação tributária em relação ao PIB oficial, que é a forma mais tradicional de analisar a arrecadação tributária. Verificamos naquele momento, já que aquela falácia de que “o Brasil é o país de maior arrecadação tributária do mundo” não é verdadeira, mesmo dentro dessa análise mais tradicional. Utilizamos um segundo indicador, onde a gente compara a arrecadação tributária não mais em relação ao PIB oficial, mas em relação ao PIB real, incluindo uma estimativa que seria resultante do setor informal. Dessa forma, verificamos que algumas questões que eram ditas, como “a tributação do Brasil é semelhante ao Japão, é semelhante à Inglaterra, é semelhante à Nova Zelândia”, a partir do momento que nós temos características muito distintas em relação ao peso do setor informal, quando nós colocamos essa estimativa do setor informal no cálculo, a nossa arrecadação já fica muito diferente da arrecadação desses países.
Trabalhamos também com outro indicador, que é a arrecadação tributária per capita em dólares internacionais, ou seja, em uma moeda que exprime a paridade do poder de compra. Aí, a gente verifica que a nossa arrecadação representa mais ou menos 30% da média do grupo dos países desenvolvidos, porque nós temos uma população muito grande, então, obviamente, a nossa disponibilidade de gastos é muito distinta. Em relação à América Latina, também ouvimos muito na mídia o comentário de que “o Brasil é o país da América Latina com a maior arrecadação tributária, que a arrecadação do Brasil é praticamente o dobro” — ao excluir as contribuições sociais da análise, nossa arrecadação é muito parecida com a média dos países latino-americanos; e, nesse sentido, é interessante que a gente tenha um percentual razoável de contribuições sociais para poder financiar a seguridade social. Enfim, esperamos que seja bem recebido e que agora os meios de comunicação tenham um grupo maior de indicadores para poder fazer seus comentários e divulgar informação.
A.C.: A obra já está sendo muito bem recebida, até porque estamos com um pouco mais de 10 anos da publicação do livro do Thomas Piketty [economista francês], “O Capital no Século XXI”. E esse livro, de certa forma, tem como um curador teórico o trabalho do Piketty, onde demonstra que a tributação foi responsável, em parte, pela desigualdade econômica. Então, a gente tem que mudar esse modelo para que a gente possa implementar mecanismos de solidariedade fiscal, de igualdade econômica entre os agentes e de redução do custo operacional para as empresas também. Então, também esperamos algo nesse sentido.
Para encerrar, além das contribuições dos autores, apresentamos a seguir a análise do diretor institucional do Comsefaz, André Horta, que reflete de forma contundente sobre os equívocos conceituais e a assimetria informacional que permeiam o debate fiscal no Brasil. Com base em dados comparativos e exemplos didáticos, Horta demonstra como a nomenclatura usada para a arrecadação tributária em nosso país revela um viés ideológico que distorce a percepção pública sobre a solidariedade fiscal e seus efeitos sociais.
Em sua fala, ele destaca a necessidade de fortalecer uma cultura de reciprocidade quota, condição essencial para que o Brasil avance rumo a uma sociedade mais equitativa, com maior capacidade de investimento em políticas públicas e promoção do desenvolvimento humano. A seguir, apresentamos na íntegra suas considerações sobre o impacto que a obra pode exercer no debate político e nas decisões fiscais do país.
André Horta: Espero que o impacto seja imenso, porque a quantidade de informação assimétrica que circula — e que este livro enfrenta — é muito grande. Você imagina: já começa pelo título, Solidariedade Fiscal. O nome da arrecadação tributária em relação ao PIB é chamado de “carga tributária”. “Carga” é um termo quase pejorativo. É uma palavra pesada. Por quê? Nós temos a maior arrecadação do mundo? Não. Estamos na 53ª posição em arrecadação per capita mundial. Por que, mesmo estando em 53º lugar, usamos um termo pejorativo? A França, que está entre os dez primeiros colocados nesse mesmo índice, usa uma expressão neutra: niveau d’imposition (em tradução livre, “nível de imposição”). A nossa nomenclatura tributária é equivocada, porque não transmite a ideia de aplicação do capital arrecadado. Palavras criam mundos. E há, inclusive, o uso estratégico do léxico para nomear o debate. Ou seja, a disputa político-social já começa no título.
O segundo ponto é essa nossa posição no ranking: 53º lugar. Para entender melhor, vamos comparar: a arrecadação per capita do Brasil representa um terço da média da OCDE. Ou seja, não podemos dizer que arrecadamos muito se estamos tão abaixo da média. Se compararmos com países que arrecadam mais, esse percentual é ainda menor. Mesmo assim, quando debatemos arrecadação, ouvimos argumentos como: “O Brasil arrecada 32% do PIB e a Inglaterra, 31%, então nossa carga é alta.” Isso revela uma dificuldade de compreensão matemática.
“O desenvolvimento de um país está diretamente ligado à sua estrutura tributária” André Horta
Existe uma ideia equivocada de que a arrecadação brasileira é exagerada, quando, na verdade, enfrentamos uma grande escassez de recursos em comparação com países desenvolvidos. Estamos no mesmo patamar da Tunísia, como mostra a tabela do livro. Por isso, temos que ser realistas nas cobranças. Não dá para exigir uma infraestrutura francesa com quatro vezes menos recursos do que eles têm — ainda mais considerando que a população brasileira é muito maior.
Outro ponto importante: existe a crença de que, se reduzirmos a arrecadação, o país terá mais chances de crescer — como se os impostos atrapalhassem o indivíduo e o dinheiro devesse ficar com a população. Mas, quando bem estruturada, a arrecadação tributária deve cobrar mais de quem tem mais e aplicar mais em quem tem menos. É assim que um país se torna mais igualitário. Essa lógica aparece em um dos gráficos mais importantes da pesquisa: o que relaciona a arrecadação per capita ao IDH. O desenvolvimento de um país está diretamente ligado à sua estrutura tributária.
É verdade que essa relação não se aplica a países com matérias-primas valiosas, como a Arábia Saudita, porque se financiam por meio de riquezas derivadas de recursos naturais.
São exceções, fora da curva. Mas, para países que dependem da indústria e do comércio, a regra é clara: quanto mais recursos públicos, maior o desenvolvimento; quanto menos, menor. Com mais recursos, o Estado pode fazer mais estradas, oferecer melhor previdência, pagar salários mais altos — e isso estimula o consumo e o crescimento da economia.
“Para países que dependem da indústria e do comércio, a regra é clara: quanto mais recursos públicos, maior o desenvolvimento; quanto menos, menor” André Horta
A arrecadação também reduz a desigualdade. Portanto, retirar tributos não gera crescimento automático. Isso já está demonstrado. E a forma como se tributa importa muito: a tributação do consumo é regressiva, porque todos pagam o mesmo imposto sobre o mesmo produto — independentemente da renda. Um pão custa o mesmo para uma pessoa em situação de pobreza, para alguém da classe média e para um bilionário. Mas o peso desse imposto é muito maior para quem tem menos.
Já o imposto sobre a renda é progressivo: quem ganha mais, paga mais. Esse tipo de tributo tem potencial para reduzir a desigualdade e fomentar o crescimento econômico. Com mais recursos aplicados no “andar de baixo”, amplia-se a base de consumo, e a economia gira de forma mais inclusiva.
Além disso, quando a tributação se concentra sobre rendas mais altas — que muitas vezes não são convertidas em consumo, mas acumuladas no mercado financeiro —, arrecada-se menos proporcionalmente ao PIB. Por isso, trazer esses recursos para a economia real permite ao Estado oferecer serviços públicos gratuitos, como saúde e educação, o que aumenta a renda das famílias mais pobres, melhora o IDH e fortalece o PIB. Essa é a verdadeira solidariedade fiscal.
“A arrecadação também reduz a desigualdade. Portanto, retirar tributos não gera crescimento automático” André Horta