O Supremo Tribunal Federal se aproxima do fim de um julgamento que redefine os contornos da esfera pública digital no Brasil. A análise da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet não é só uma disputa jurídica: trata-se de discutir o papel que as plataformas digitais exercem no debate público e as responsabilidades que devem assumir.
A sinalização do tribunal é clara: parte do regime atual já não se sustenta diante das transformações tecnológicas e do compromisso constitucional com a proteção de direitos.
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Quando o Marco Civil foi aprovado, dez anos atrás, ainda parecia fazer sentido tratar todas as plataformas digitais como meros intermediários — empresas que apenas “transportavam” o que usuários publicavam, sem qualquer controle ou interferência relevante sobre essa circulação. Hoje, essa ideia não se sustenta mais, em face dos filtros que decidem o que aparece, o que é recomendado, o que viraliza e o que desaparece na sombra dos algoritmos. Isso não é neutralidade. É poder. E é fundamental haver uma responsabilidade proporcional.
É esse o ponto central que a maioria do Supremo já reconheceu: não é possível aplicar, de forma automática e acrítica, um modelo jurídico pensado para uma internet que já não existe e para atores que mudaram radicalmente de papel.
Mas reconhecer a inadequação do modelo atual não significa abandonar tudo o que o Marco Civil trouxe. Pelo contrário. Há sabedoria em preservar parte do regime atual, especialmente para plataformas que de fato não têm — ou não deveriam ter — interferência significativa no conteúdo dos usuários. Não faz sentido submeter o Registro.br, que só gerencia domínios, ou a Wikipedia, que funciona por autogestão comunitária, às mesmas regras aplicáveis ao Instagram ou ao YouTube, que moldam ativamente a visibilidade do que circula.
Também é essencial manter uma salvaguarda central do Marco Civil: nos casos mais sensíveis à liberdade de expressão — como conteúdos jornalísticos ou disputas envolvendo honra e reputação — deve continuar cabendo ao Judiciário decidir sobre a legalidade do conteúdo.
Para o restante dos ilícitos, o caminho é o regime de notificação por usuários e tomada de ação das plataformas já previsto no artigo 21 do Marco Civil. A exceção fica por conta de uma lista restrita de condutas especialmente graves. Nesses casos, o Supremo sinaliza que será necessário instituir um dever de cuidado voltado a esses ilícitos de maior gravidade, como racismo, homofobia e exploração sexual infantil, por exemplo.
Esse dever de cuidado não deve se confundir com uma obrigação de filtrar, individualmente, cada conteúdo postado na rede. O que se exige é a implementação de sistemas robustos de governança, moderação e resposta, condizentes com os riscos que essas plataformas oferecem.
Esse é o caminho que permite evitar dois riscos opostos — e igualmente perigosos. De um lado, a omissão absoluta; de outro, o incentivo à remoção preventiva e indiscriminada de qualquer conteúdo que gere dúvida. Nenhum desses extremos interessa a uma sociedade democrática.
Considerando a intensa curadoria que as plataformas já exercem sobre o conteúdo que circula em suas redes, é fundamental que essa curadoria seja orientada por parâmetros constitucionais. Isso significa adotar medidas eficazes para mitigar a disseminação de conteúdos danosos e aplicar mecanismos mais robustos de moderação diante de materiais que representem riscos elevados aos direitos fundamentais.
Significa compreender também que essa proteção passa por deveres adicionais de transparência – por meio de relatórios sobre moderação e bibliotecas de anúncios – como reconhece a maioria dos ministros.
É nesse ponto que emerge uma peça institucional crucial: a necessidade de uma autoridade capaz de acompanhar, fiscalizar e orientar esse ecossistema — ao menos até que o Congresso Nacional estabeleça um marco regulatório mais abrangente. Não é razoável atribuir ao Judiciário a tarefa de avaliar se uma plataforma implementou mecanismos adequados de moderação, se investe de forma proporcional aos riscos ou se há falhas estruturais que justifiquem sua responsabilização posterior.
Essa autoridade precisa ter uma expertise instalada, além de contar com uma diretoria independente, protegida por mandatos, que lhe garantam autonomia técnica e decisória. No Brasil, essa autoridade já existe: é a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e reúne justamente esses atributos. Com competência sobre o tratamento de dados — atividade central das plataformas digitais —, corpo técnico especializado e processos regulatórios em curso, a ANPD reúne as condições mínimas para exercer esse papel.
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Portanto, o que está em jogo neste julgamento não é apenas a revisão de um artigo da lei, mas a construção de um novo equilíbrio institucional para a internet brasileira. Um equilíbrio que reconhece e aponta um novo papel das grandes plataformas com alta interferência no conteúdo.
Uma tese clara, sintética e sensível a estes desafios pode ser a virada de página que o tema precisa sob o olhar constitucional, assim chamando o Congresso para que volte a se debruçar sobre o tema.
Se a nova esfera pública digital se apoia em uma infraestrutura privada poderosa, torna-se indispensável construir formas de governança democrática, orientadas pelos valores da Constituição. Até aqui, a moderação de conteúdo tem sido guiada principalmente por critérios comerciais — aquilo que gera atenção, engajamento, viralização —, o que frequentemente resulta na amplificação de conteúdos criminosos ou nocivos, inclusive para crianças e grupos vulneráveis.
O Supremo começa a corrigir essa assimetria: diante dos modelos de negócio que estruturam as plataformas digitais, proteger a liberdade de expressão exige ações positivas do Estado que garantam um mínimo de pluralidade, transparência e responsabilidade nos espaços em que o debate público é mediado. Trata-se de instituir responsabilidade proporcional ao poder que detêm.