A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, em fevereiro, que cabem honorários de sucumbência em casos de improcedência do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ), alterando jurisprudência que vigorava há anos. O IDPJ é uma ferramenta judicial utilizada por diversos agentes do mercado financeiro para recuperação de crédito, que agora temem o impacto financeiro da decisão e insegurança jurídica retroativa.
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Na prática, a medida significa que, caso alguma parte peça ao Judiciário para desconsiderar a personalidade jurídica de uma empresa devedora e não consiga demonstrar abuso ou fraude, as previsões para o IDPJ no Código Civil de 2015, terá de arcar com os honorários do advogado da parte contrária. “A regra mudou no meio do jogo. A jurisprudência anterior orientava a conduta de quem emprestou dinheiro, estruturou operações e litigou com base nesse entendimento. Agora, pode haver prejuízo de até 20% sobre o valor da causa, mesmo sem recuperar nada do crédito”, afirma Luis Fernando Guerreiro, sócio da Lobo de Rizzo Advogados.
Embora não tenha sido proferida sob a sistemática dos repetitivos, a decisão ganha status de precedente ao ter sido tomada pela Corte Especial. No caso concreto (REsp 2.072.206/SP), prevaleceu o entendimento do relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, para quem o IDPJ tem natureza de demanda incidental, com partes, causa de pedir e pedido distintos. “O indeferimento do pedido […] dá ensejo à fixação de verba honorária em favor do advogado de quem foi indevidamente chamado a litigar em juízo”, segundo o voto do ministro.
A ministra Nancy Andrighi, em voto-vogal em que acompanhou o relator, afirmou que o CPC superou a teoria da unidade estrutural da sentença, permitindo a fragmentação do julgamento do mérito e, com isso, a possibilidade de condenação em honorários mesmo em decisões interlocutórias. Para a ministra, o IDPJ, por alterar substancialmente a relação processual, enquadra-se nessa hipótese.
Na divergência, foram vencidos os ministros João Otávio Noronha, Humberto Martins, Benedito Gonçalves, Raul Araújo e Isabel Gallotti, que defenderam a permanência da jurisprudência anterior, baseada na inexistência de previsão legal para honorários em incidentes processuais. Para Noronha, o IDPJ é “parte do todo, e não o todo”.
Processo
O IDPJ, previsto no artigo 134 do CPC, não está no trecho da legislação que prevê honorários de sucumbência. O pagamento, segundo o CPC, é devido na reconvenção; no cumprimento de sentença, provisório ou definitivo; na execução, resistida ou não; e nos recursos interpostos. Até 2023, o STJ entendia que não cabiam honorários de sucumbência, considerando, à época, que o IDPJ não é um recurso, mas uma decisão interlocutória.
Isso começou a mudar com um julgamento na 3ª Turma em outubro de 2023. Em setembro de 2023, a 3ª Turma do STJ decidiu, no REsp 1.925.959/SP, que cabe honorários em caso de improcedência do IDPJ. A 4ª Turma, por sua vez, ainda seguia a orientação anterior, o que levou a questão à Corte Especial.
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Para Diogo Rezende de Almeida, sócio no Galdino & Coelho Advogados e professor de Processo Civil na FGV-Rio, “durante mais de cinco anos, o STJ teve entendimento pacífico no sentido de que não cabia sucumbência no IDPJ. De forma repentina, esse entendimento foi revertido, criando um passivo retroativo”. Segundo ele, as condenações podem chegar a valores milionários. “Temos casos em que a execução é de R$ 80 milhões. Se o pedido de desconsideração é rejeitado, o credor pode ser condenado a pagar R$ 8 milhões de honorários. Isso torna inviável insistir na cobrança, mesmo quando há indícios de fraude”, afirma.
Mas há quem concorde com o STJ. “O IDPJ sempre foi uma pretensão com causa de pedir autônoma, mesmo sendo um incidente. A parte que é chamada a se defender no IDPJ não participava da ação original. Se ela se defende, prova que não cometeu nenhum abuso e vence, é natural que receba honorários. Isso está alinhado ao que prevê o CPC”, afirma o professor Eduardo Talamini, da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Para o professor Cássio Scarpinella Bueno, que atuou como amicus curiae como presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (IBDP), a decisão está correta. “Trata-se de uma ação incidental, com todos os elementos de uma pretensão judicial: pedido, causa de pedir, contraditório e decisão com trânsito em julgado. Como qualquer outra, ela gera os mesmos ônus processuais.”
Sob a ótica da Análise Econômica do Direito, a decisão também tem efeitos positivos, segundo Bianca Mollicone, diretora da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE). “Havia um desequilíbrio. O credor acionava o Judiciário sem risco adicional. Com a decisão, ele passa a internalizar esse custo e a pensar duas vezes antes de litigar sem provas robustas”. Ela também lembra que o IDPJ era uma das únicas vias litigiosas sem risco de sucumbência, o que, segundo ela, gerava incentivos distorcidos no sistema.
“O IDPJ é uma ferramenta essencial, quando presentes os requisitos. Como toda ferramenta jurídica, precisa ser usada com responsabilidade. Hoje, vemos IDPJ sendo usado de forma aleatória para pressionar sócios”, afirma Laura Bumachar, sócia do Dias Carneiro Advogados.
“Mesmo quem defende a tese vencedora, como é meu caso, precisa reconhecer que houve uma virada jurisprudencial relevante. A jurisprudência anterior orientava condutas. Modulação seria uma forma de respeitar o princípio da segurança jurídica”, afirma Cássio Scarpinella Bueno.
Outra questão é que o voto vencedor, do ministro Villas Bôas Cueva, não fixa expressamente a bilateralidade da sucumbência: “O indeferimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica formulado no bojo do cumprimento de sentença, seja na forma de incidente processual ou de simples petição, dá ensejo à fixação de verba honorária em favor do advogado de quem foi indevidamente chamado a litigar em juízo”. Segundo Scarpinella, “se o terceiro incluído vence, recebe honorários. Se perde, deveria pagar também. O raciocínio é o mesmo”.
Mercado
A nova jurisprudência deve impactar também o mercado de non-performing loans (NPLs), ou crédito não produtivo ou inadimplido, em português. Isto é, empréstimos ou financiamentos cujo pagamento está atrasado por um período prolongado — geralmente mais de 90 dias. Esses ativos são frequentemente vendidos por instituições financeiras a empresas especializadas na tentativa de recuperá-los judicial ou extrajudicialmente, ou para mesas de renda fixa proprietária de bancos de investimento e fundos especializados em ativos alternativos de crédito.
Essas dívidas são securitizadas, geralmente, na forma de Sociedades de Propósito Específico (SPE) e Fundos de Investimento em Direito Creditório Não Padronizado (FIDC-NP). Segundo levantamento da Deloitte, em 2023, o mercado de NPL no Brasil alcançou um recorde de R$ 72 bilhões em transações, valor que se manteve estável em 2024. Para 2025, a projeção de saldo de crédito é 7,7%, segundo Relatório de Política Monetária do Banco Central, o que significa ainda mais espaço para os NPLs. Mas a mudança na jurisprudência pode alterar essa dinâmica.
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A JiveMauá, gestora de investimentos ativos que trabalha com aquisição de carteiras desse tipo, já atuou em mais de 8 mil execuções bancárias e ajuizou mais de 1400 IDPJs, a “imensa maioria deles bem-sucedida”, nos últimos 12 anos, diz Mateus Tessler, sócio e CIO responsável pela estratégia de Distressed Investments da gestora.
Para ele, com a interpretação do STJ, “o que vai acontecer na prática é que o devedor terá mais incentivos para esconder patrimônio. E se o credor for punido por tentar responsabilizá-lo, o sistema todo perde. A consequência pode ser um aumento do spread bancário, porque o risco de inadimplência cresce”. Atualmente, a gestora tem cerca de 100 IDPJs ativos e, para Tessler, a nova decisão não reduz o apetite por carteiras com litígios complexos, mas muda o cálculo de risco. “A gente vai incorporar isso à precificação. Se o risco for alto demais, não compramos. É simples assim”, diz.
Outros instrumentos já são utilizados pela JiveMauá como substitutos ou complementares aos IDPJ, mas nem sempre são as alternativas mais eficientes ou mais baratas. Um exemplo disso é um caso identificado pela JiveMauá durante a análise patrimonial, em que houve uma manobra societária na qual uma empresa devedora transferiu seus ativos para uma nova pessoa jurídica criada com nome semelhante e composição societária quase idêntica. “Chamava Tech Alguma Coisa, e criaram a Tech Alguma Coisa Brasil. Mesmo endereço, mesmo administrador, quadro societário muito parecido. Tiraram todos os ativos da original e colocaram na nova. O estoque, inclusive”, diz Tessler.
Uma das opções avaliadas para contornar o IDPJ é a alegação de fraude à execução, prevista no artigo 792 do CPC. Esse mecanismo permite declarar ineficaz a transferência de bens feita após a citação do devedor. O problema é que, no exemplo dado por Tessler, a nova empresa, beneficiária da fraude, não é parte do processo. Para atingi-la, seria necessário primeiro incluí-la na relação processual, o que, na prática, exige a instauração de um IDPJ para atingir a nova empresa.
Outra via possível seria propor uma ação autônoma para discutir a simulação ou fraude civil entre as duas pessoas jurídicas. No entanto, essa estratégia exige um processo à parte, é mais demorada, e não tem os ganhos de celeridade e concentração processual do IDPJ. “É possível tentar contornar, mas é inegável que o IDPJ é o caminho mais direto e robusto. Quando ele se torna arriscado, quem ganha são os maus pagadores”, diz Tessler.
As instituições de cobrança já começaram a se adaptar. Segundo Guerreiro, do Lobo de Rizzo, os incidentes de desconsideração não foram abandonados, mas passaram a ser antecedidos por investigações mais sofisticadas. Há uma assimetria de informações, com a situação financeira do devedor podendo mudar radicalmente depois que o crédito foi concedido. “Temos trabalhado com sistemas de monitoramento patrimonial, vistorias, emissões periódicas, relatórios para tornar os pedidos de IDPJ mais robustos desde o início. Mas isso custa”.
Necessidade de modulação
Em nota enviada ao JOTA, a Febraban, que foi amicus curiae no processo no qual o STJ decidiu sobre o IDPJ, afirma que espera que, no julgamento dos embargos, “haja modulação dos efeitos para, ao menos, conferir segurança jurídica às desconsiderações requeridas antes da posição firmada pelo STJ”. Além disso, a federação afirma que “entende que a política da administração judiciária deve se fundamentar na equidade e isonomia. Assim, os honorários de sucumbência em caso de rejeição do incidente de desconsideração da personalidade jurídica devem ser aplicados de forma equânime para as partes, independente de quem tenha o direito reconhecido”.
Para Tessler, da JiveMauá, a ausência de parâmetros objetivos para a fixação dos honorários, que, segundo a decisão, podem variar entre 10% e 20% do valor da causa, também é um ponto de atenção. Ele também sugere uma preocupação com um possível efeito colateral da nova jurisprudência: a instrumentalização da decisão por devedores que, ao serem alvo de um pedido de IDPJ, poderiam reagir com pedidos de danos morais mesmo quando há indícios legítimos de fraude – o tema não foi endereçado durante o julgamento no STJ.
Para Luís Fernando Guerrero, a discussão sobre a sucumbência no IDPJ evidencia uma tensão maior: a disfuncionalidade do sistema de cobrança judicial, mesmo após sucessivas reformas do Código de Processo Civil. “Se a gente for olhar, a informatização dos autos processuais teve um impacto muito maior no processo do que a maioria das alterações legislativas”, afirma. “O problema da inefetividade das execuções no Brasil não está no jurídico, mas na falta de racionalidade prática e organização dos meios”, diz. “O recado do STJ é ambíguo. De um lado o Judiciário quer mais responsabilidade no uso de instrumentos como o IDPJ, mas de outro não oferece um caminho claro para quem quer cobrar com seriedade.”