A jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) é notoriamente rigorosa quanto à apresentação de declarações inverídicas por licitantes que buscam usufruir indevidamente dos benefícios destinados a Microempresas (ME) e Empresas de Pequeno Porte (EPP), conforme a Lei Complementar 123/2006. A sanção usualmente aplicada é a severa declaração de inidoneidade para licitar com a Administração Pública Federal, prevista no artigo 46 da Lei Orgânica do TCU (Lei 8.443/1992), que pode impedir a empresa sancionada de participar de licitações e firmar contratos com qualquer órgão ou entidade do Poder Público por até cinco anos.
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Contudo, um precedente recente do Plenário do TCU, relatado pelo Ministro Benjamin Zymler, sinaliza uma importante exceção a essa regra, valorizando a conduta proativa e corretiva do licitante.
Proteção à Isonomia
O tratamento diferenciado conferido às Microempresas (ME) e Empresas de Pequeno Porte (EPP) pela Lei Complementar 123/2006 é um instrumento fundamental para fomentar o desenvolvimento desse importante segmento empresarial e para equilibrar a competição nos certames públicos. Justamente por isso, a apresentação de declaração falsa, pleiteando tais benefícios sem o devido enquadramento legal, é historicamente vista pelo Tribunal de Contas da União como uma grave ofensa aos princípios da isonomia, da competitividade e da moralidade administrativa.
A jurisprudência consolidada da Corte de Contas, a exemplo do que se extrai dos Acórdãos 61/2019-Plenário (Rel. Min. Bruno Dantas), 1797/2014-Plenário (Rel. Min. Aroldo Cedraz) e 2858/2013-Plenário (Rel. Min. Benjamin Zymler), firmou-se no sentido de que “o simples fato da proponente se autodeclarar indevidamente usufrutuária do benefício de ME/EPP, mesmo que não tenha obtido benefício direto da declaração, seria suficiente para cometer o ilícito de declaração falsa”.
Na mesma linha, o TCU entende que “não é necessária a demonstração de dolo ou má-fé para a aplicação da declaração de inidoneidade” e “nem mesmo que a empresa seja declarada vencedora do certame ou tenha alguma vantagem para a configuração do ilícito” (Acórdão n. 1607/2023-Plenário, Relator o Min. Vital do Rêgo).
Tais entendimentos sublinham que a irregularidade se configura no próprio ato de declarar falsamente, independentemente da comprovação de má-fé da empresa ou da obtenção de vantagem concreta na licitação, bastando a potencialidade lesiva da conduta para macular o certame.
Aqui, portanto, não há espaço para o “erro escusável”. Havendo comprovação da declaração indevida, o Tribunal entende cabível a aplicação da sanção de declaração de inidoneidade para licitar com a Administração Pública Federal, prevista no art. 46 da Lei 8.443/1992. A medida possui caráter punitivo e preventivo, visando coibir condutas fraudulentas e proteger a lisura e a justiça dos processos licitatórios.
O caso concreto
Por meio do acórdão n. 1466/2024 – TCU – Plenário, a Corte de Contas julgou caso concreto no qual determina empresa, após apresentar declaração de EPP em dois pregões eletrônicos distintos, percebeu que, embora enquadrada no regime específico por seu faturamento, incidia em um impedimento específico previsto na LC 123/06 (relativo à participação de seus sócios em outras empresas cuja receita bruta global extrapolava o limite legal – Art. 3º, § 4º, IV). A empresa, portanto, não poderia fazer jus aos benefícios do tratamento diferenciado concedido legalmente em licitações às Microempresas (ME) e Empresas de Pequeno Porte (EPP).
Mesmo reconhecendo a efetiva apresentação de declarações indevidas em ambos os certames, o TCU levou em conta, no caso concreto, a conduta subsequente da empresa, que buscou corrigir o equívoco incorrido.
Especificamente, ao constatar o equívoco em um dos pregões, a empresa peticionou formalmente ao pregoeiro, antes do início da fase competitiva de lances, solicitando a desconsideração de sua condição de EPP para fins de benefícios, essencialmente retirando a declaração problemática.
No outro certame, no qual a fase de lances já havia ocorrido e a simples retirada da declaração não era mais factível ou eficaz para evitar distorções, a empresa adotou a única medida ao seu alcance para alcançar o resultado prático equivalente à correção do equívoco: provocou deliberadamente sua própria desclassificação do certame.
Ao analisar as circunstâncias concretas do caso, o Ministro Relator, Benjamin Zymler, acolheu os argumentos da defesa, aplicando por analogia institutos consagrados no Direito Penal: a desistência voluntária e o arrependimento eficaz (Art. 15 do Código Penal).
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Sua Excelência considerou que, ao tomar essas atitudes durante o curso dos procedimentos licitatórios, a empresa efetivamente neutralizou os efeitos de sua conduta inicial, ao buscar corrigi-la ou evitar os seus efeitos de forma voluntária. Reconheceu-se, portanto, que a empresa impediu que a declaração incorreta produzisse qualquer resultado prático indevido, seja em termos de obtenção de vantagem indevida para si, seja em termos de prejuízo à competitividade ou à Administração.
A conclusão do voto foi no sentido de que, em razão dessas ações corretivas eficazes, a conduta da empresa, ao fim e ao cabo, não configurou a “fraude comprovada à licitação” exigida pelo Art. 46 da Lei 8.443/1992 para a aplicação da declaração de inidoneidade. Para chegar a tal conclusão, o Relator invocou a corrente dos criminalistas Basileu Garcia, Damásio de Jesus, Frederico Marques e Heleno Fragoso, no sentido de que a desistência voluntária e o arrependimento eficaz atuam como causas que excluem a própria tipicidade da conduta fraudulenta, pois o agente impede a consumação do resultado lesivo pretendido pela norma.
Conclusão
A decisão relatada pelo Ministro Benjamin Zymler representa relevante exceção à regra geral de punição severa para declarações indevidas de ME/EPP. O TCU demonstra estar atento às nuances do caso concreto ao reconhecer a possibilidade de afastar a sanção quando o licitante, de forma comprovada, voluntária e eficaz, age para corrigir seu erro antes que ele cause prejuízos ou gere benefícios indevidos no âmbito da licitação.
É certo que a decisão não deve ser interpretada como um salvo-conduto para descuidos, mas sim como um reconhecimento de que a finalidade da norma sancionadora (coibir a fraude efetiva) pode ser considerada não atingida quando o próprio agente reverte completamente os potenciais efeitos de seu ato falho inicial. Para as empresas, fica o alerta sobre a complexidade da legislação de ME/EPP e a importância de, em caso de erro, buscar a correção imediata e documentada junto à Administração promotora do certame.