A data de hoje, 2 de julho, marca o Dia do Hospital, instituído pelo Decreto 50.871/1961, ocasião que convida a uma reflexão profunda sobre o papel dessas instituições no sistema de saúde e como o uso eficiente dos recursos hospitalares é fundamental para garantir sustentabilidade e qualidade no atendimento à população.
O aumento contínuo das despesas hospitalares é um fato indiscutivelmente desafiador. Dados do Boletim Informativo da Planisa (BIP) sobre custos hospitalares de 2024 mostram esse panorama. O custo da hora de centro cirúrgico atingiu R$ 2.239 em 93 hospitais analisados no ano passado, frente a R$ 1.954 em 2023, um aumento de 14,6% no período, percentual significativamente superior ao IPCA acumulado de 4,83% em 2024.
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Ainda que se trate de metodologias de cálculo distintas, cada qual com variáveis próprias, a comparação tem o intuito de ilustrar que a análise isolada de quanto se gasta pode não refletir aquilo que deveríamos ter como propósito central: gerar mais saúde.
E o que isso significa, na prática? Na área da saúde, ainda persiste a crença equivocada de que mais hospitais, mais centros cirúrgicos ou mais unidades assistenciais equivalem automaticamente a mais saúde. Trata-se, porém, de uma ilusão, eficaz, talvez, em gerar votos, mas ineficaz em promover bem-estar real à população.
Para não ampliar demasiadamente o escopo, concentro-me aqui nos centros cirúrgicos. O mesmo BIP traz um dado preocupante e recorrente: a taxa de ocupação dos centros cirúrgicos, que era de 41,3% em 2019, caiu para 40,2% em 2024. Isso significa que aproximadamente 60% do tempo operacional disponível desses 93 centros cirúrgicos permaneceu ocioso, um índice alarmante de desperdício de recursos.
A ociosidade das unidades de saúde é, possivelmente, a principal fonte de ineficiência no setor. E vale lembrar que o centro cirúrgico é, reconhecidamente, uma das estruturas hospitalares que mais consome recursos. No entanto, o problema não termina aí. Outras questões merecem reflexão, a pontualidade da primeira cirurgia do dia, por exemplo. Estudos demonstram que atrasos iniciais impactam todo o cronograma. Segundo a Anestech, após o primeiro atraso, cerca de 50% das cirurgias subsequentes também sofrem atrasos.
Soma-se a isso a pertinência do procedimento cirúrgico: em um contexto cada vez mais orientado à segurança, à efetividade e ao valor em saúde, questionar a real necessidade da cirurgia deixa de ser algo secundário e se torna um princípio fundamental da boa prática médica.
O relatório da Comissão Europeia sobre Value-Based Healthcare reforça que a boa alocação de recursos exige a redução de intervenções de baixo valor e o fortalecimento daquelas com maior impacto clínico e social, premissa especialmente relevante no contexto cirúrgico, dada sua natureza invasiva, alto custo e risco inerente.
Outros fatores que comprometem a eficiência incluem a falta de processos estruturados, como as solicitações de materiais, medicamentos e hemoderivados feitas sem critérios claros, além de uma cultura organizacional resistente.
Estruturas conservadoras, pouco colaborativas e rigidamente setorializadas tendem a dificultar iniciativas de melhoria contínua e integração entre áreas. A ausência de dados estruturados e indicadores operacionais que permitam direcionar a gestão do centro cirúrgico para práticas mais eficientes e baseadas em evidências é outro ponto.
Também merece destaque a excessiva fragmentação assistencial e a falta de interoperabilidade entre sistemas de informação, conforme destacado por Makdisse et al, em um importante estudo sobre os desafios da implementação da saúde baseada em valor na América Latina. Além disso, a persistência do modelo remuneratório fee-for-service estimula o volume de procedimentos em detrimento do valor gerado ao paciente.
Em síntese, discutir apenas o “quanto custa” é insuficiente. É necessário avançar para perguntas mais estratégicas: “Para que se gasta?”, “Com que efetividade?” e “Qual o retorno em saúde?”. A sustentabilidade do sistema exige romper com paradigmas ineficientes, combatendo a ociosidade e adotando, de forma concreta, uma lógica centrada em valor. Algumas recomendações podem, de maneira relevante, aumentar a eficiência do centro cirúrgico e, por consequência, das unidades de saúde como um todo, reduzindo diretamente a necessidade de investimentos em novos centros cirúrgicos ou hospitais.
Entre elas, destacam-se a utilização de ambulatórios cirúrgicos para procedimentos de baixa complexidade, com potencial de redução de custos, menor tempo de permanência e maior giro de pacientes; a revisão das práticas de solicitação de hemoderivados — dados da Anestech indicam que há subutilização significativa em relação ao volume reservado, revelando oportunidades de otimização logística e financeira; e a reavaliação da reserva preventiva de leitos de UTI para cirurgias, uma vez que evidências apontam para um padrão de superdimensionamento na solicitação, o que gera bloqueios desnecessários e impacto expressivo nos custos assistenciais.
Também é fundamental promover a análise criteriosa da necessidade cirúrgica, com base em diretrizes clínicas atualizadas, evidências científicas robustas e, sobretudo, nas preferências e valores do paciente, premissas centrais para um cuidado seguro, efetivo e eticamente orientado. A substituição de uma cultura punitiva por uma cultura de aprendizado frente a eventos adversos é outro passo necessário. A segurança assistencial deve ser encarada como eixo estruturante da qualidade do cuidado e vetor essencial para a redução de desperdícios.
Além disso, devem ser feitas correções em processos internos visando à redução da taxa de cancelamento de cirurgias, seja por falhas logísticas, indisponibilidade de recursos ou ausência de alinhamento entre equipes. É urgente a eliminação de atividades improdutivas ou sem valor agregado, frequentemente mantidas por barreiras funcionais internas ou exigências burocráticas que geram atrasos, retrabalho e consumo desnecessário de tempo e recursos.
Também é necessário revisar a estrutura organizacional tradicional dos hospitais, marcada por forte departamentalização. Essa configuração, centrada na hierarquia e não na responsabilidade por processos, compromete a cooperação intersetorial e a fluidez assistencial.
Por fim, é estratégica a adoção de estratégias de especialização das unidades. A lógica de que “quem mais faz, faz melhor” reforça que centros cirúrgicos de hospitais gerais, com equipamentos dispersos e fluxos não padronizados, tendem à ociosidade estrutural e à baixa eficiência operacional.
A transformação do sistema de saúde exige governança clínica efetiva, reformulação dos modelos de incentivo e o fortalecimento de uma cultura institucional orientada ao aprendizado contínuo. Experiências nacionais e internacionais demonstram que é possível avançar rumo a uma saúde baseada em valor, desde que haja clareza conceitual, alinhamento entre os diversos stakeholders e comprometimento real com a transformação organizacional.
Nesse cenário, impõe-se uma reflexão inevitável: quantos novos hospitais e centros cirúrgicos ainda precisaremos construir até compreendermos que o caminho mais econômico, sustentável e inteligente é utilizar com eficiência a estrutura que já temos?