Turmas do Tribunal Superior do Trabalho (TST) têm dado decisões divergentes sobre a validade de normas coletivas que ampliam o tempo que pode ser gasto por trabalhadores, sem pagamento de remuneração extra, para atividades como troca de uniforme, banho ou deslocamento entre a catraca e o relógio de marcação de ponto. Em alguns casos, essas normas estipulam períodos que superam em até quatro vezes o limite de 10 minutos diários previsto na CLT (artigo 58, §1º).
No cerne da controvérsia, está a aderência ou não desses casos ao entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Tema 1.046 de repercussão geral. O precedente do Supremo estabelece a prevalência do acordado sobre o legislado, exceto na hipótese de direitos absolutamente indisponíveis.
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Em decisões publicadas até junho deste ano, ministros da 5ª e 7ª Turmas do TST consideram que os minutos residuais são uma mera questão de jornada de trabalho e, sendo assim, podem ser alvo de negociação coletiva. Por outro lado, decisões contemporâneas da 3ª e 6ª Turmas vão em sentido contrário. Os magistrados concluem que os minutos que antecedem e sucedem a jornada de trabalho têm relação direta com a saúde e segurança do trabalhador e, portanto, se encaixam na exceção prevista pelo Supremo. Como resultado, invalidam as normas e condenam as companhias ao pagamento de horas extras. Como mais um argumento, citavam as Súmulas 366 e 449 do TST, que tratavam do assunto, mas foram canceladas pelo Pleno no início de julho deste ano, o que pode, mais uma vez, movimentar o debate daqui para frente.
As súmulas revogadas estabeleciam que, nos casos em que houvesse a extrapolação do limite diário de 10 minutos, todo o tempo que excedesse a jornada deveria ser usado para o cálculo das horas extras devidas, e vedavam a flexibilização deste limite por norma coletiva. Elas foram canceladas por serem consideradas incompatíveis com as mudanças trazidas pela Lei da Reforma Trabalhista (nº 13.467/2017). Na ocasião, porém, os ministros do Pleno pontuaram que o cancelamento não implicaria na formação automática de entendimento em sentido contrário a respeito das questões jurídicas abordadas, apenas abriria a discussão, desvinculando as interpretações anteriores.
Direito indisponível x disponível
A 3ª Turma do TST, no dia 18 de junho, negou recurso de uma empresa do setor siderúrgico contra decisão monocrática do ministro José Freire Pimenta, que a condenou ao pagamento de 23 minutos diários, a título de horas extras, a um operador de máquina, que alegou usar o tempo residual, antes e depois da jornada, para troca de uniforme, banho e deslocamento. A companhia argumentou que a relação estava sob efeito de norma coletiva que prevê um limite de tolerância superior ao legal para os minutos residuais. (Processo nº 10960-48.2019.5.15.0085)
Os ministros entenderam que a norma coletiva era inválida, porque o direito em questão não é passível de negociação. “Não há qualquer dúvida de que o direito indisponível tem relação direta com a garantia de saúde, segurança e higidez do trabalhador, matéria de ordem pública, infensa à negociação coletiva”, escreveu Pimenta em trecho da decisão monocrática citado pelo acórdão.
Além da inaplicabilidade do Tema 1.046 do STF ao caso, o colegiado também detalhou que a decisão estava de acordo com a jurisprudência sumulada do TST sobre o assunto, especificamente as Súmulas 366 e 449. As Súmulas foram canceladas cerca de 10 dias depois da decisão, mas ainda eram válidas na época em que o julgamento foi proferido.
Entendimento similar fundamentou decisão da 6ª Turma do TST, também publicada no último dia 18 de junho. Seguindo o voto do relator, o ministro Augusto César Leite de Carvalho, os ministros negaram recurso de uma empresa do setor de avicultura que questionava condenação determinada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT3), em Minas Gerais. O Regional condenou a companhia a pagar 16 minutos extras por dia efetivo de serviço a uma operadora de evisceração. Segundo os autos, o tempo excedente à jornada era usado para troca de uniforme, banho e lanche. (Processo nº 11529-74.2016.5.03.0057)
No acórdão da 6ª Turma, Carvalho detalhou que no julgamento do Tema 1.046 ficou definido que entre os direitos absolutamente indisponíveis estão aqueles que pelas normas, mesmo que infraconstitucionais, asseguram garantias mínimas de cidadania aos trabalhadores. O ministro pontuou que foi enumerado pelo Supremo, exemplificativamente, direitos cujos limites de disponibilidade já estavam definidos pela jurisprudência do STF e do TST, com citação direta na tabela ilustrativa utilizada na ocasião à Súmula 449 do TST.
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Carvalho acrescentou ainda um segundo fundamento, de que negociações coletivas que expandem o tempo de trabalho sem devida remuneração afrontam os incisos X e XVI do artigo 7º da Constituição, que garantem a devida contraprestação salarial pelo trabalho realizado.
Em contrapartida, decisão proferida apenas sete dias antes pela 7ª Turma do TST foi em sentido contrário. O colegiado foi unânime ao prover recurso da General Motors neste ponto e derrubar condenação ao pagamento de horas extras que havia sido determinado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT15), em Campinas (SP).
A 7ª Turma considerou válida norma que previa que não fossem computados na jornada de trabalho dos empregados tempo residual de até 40 minutos. “O caso em análise não diz respeito diretamente à restrição ou redução de direito indisponível, aquela que resulta em afronta a patamar civilizatório mínimo a ser assegurado ao trabalhador, mas apenas a ‘jornada de trabalho’”, escreveu o relator, ministro Alexandre Agra Belmonte, no acórdão. (Processo nº 12085-45.2017.5.15.0045)
O ministro também ressaltou que a matéria não está elencada no artigo 611-B da CLT, introduzido pela Lei da Reforma Trabalhista (13.467/2017), que menciona direitos que constituem objetivo ilícito de negociação coletiva. Frisou ainda, por analogia, que no julgamento do Tema 1.046 do STF, prevaleceu, por maioria, o entendimento do relator, ministro Gilmar Mendes, que prestigiou norma coletiva que flexibilizava horas in itinere (de deslocamento) e explicitou que, mesmo que a questão estivesse vinculada ao salário e à jornada, a própria Constituição permite a negociação coletiva em relação aos referidos temas.
A interpretação foi semelhante à dada pela 5ª Turma do TST em decisão proferida em 2024, que já transitou em julgado. Na ocasião, o colegiado proveu recurso da Volkswagen e derrubou condenação ao pagamento de horas extras, por minutos residuais, que também havia sido determinada pelo TRT15. (Processo nº 11299-58.2016.5.15.0102)
No acórdão, o ministro Breno Medeiros, relator, observou que apesar da jurisprudência do TST na época, a decisão do STF foi enfática ao estabelecer a possibilidade de norma coletiva dispor sobre jornada de trabalho. “Desse modo, não se tratando a matéria em debate de direito indisponível, há de ser privilegiada a norma coletiva que elastece o limite de tolerância quanto aos minutos que antecedem e sucedem a jornada de trabalho para além de 5 minutos para fins de apuração das horas extras, conforme previsto no art. 7º, XXVI, da Constituição Federal”, disse.
Insegurança jurídica
A percepção de que a divergência entre as Turmas da Corte resulta em insegurança jurídica é compartilhada por advogados que atuam dos dois lados.
O advogado Célio Roberto de Souza, que representou o trabalhador no caso analisado pela 7ª Turma do TST, chama a atenção para a frustração criada pela falta de uniformização, uma vez que ela acaba por permitir que trabalhadores de uma mesma empresa acabem tendo resultados diferentes ao ajuizar ações semelhantes. “Ter que explicar para o cliente que ele perdeu enquanto dois mil clientes, não só do nosso escritório, mas de toda a região, ganharam. Isso é frustrante”, diz.
Já o advogado Bruno Alvarenga Nascimento, sócio-coordenador de Trabalhista do Moisés Freire Advocacia, que representou a empresa do setor de avicultura no processo analisado pela 6ª Turma, afirma que, embora a validade de cláusulas coletivas que tratam de minutos residuais encontre respaldo na jurisprudência do TST, especialmente após o julgamento do Tema 1.046 pelo STF, o assunto ainda está longe de ser pacificado na Justiça do Trabalho.
Nascimento defende que, a fim de garantir coerência e segurança jurídica aos jurisdicionados, o impasse demanda intervenção da Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1), órgão responsável pela uniformização da jurisprudência das Turmas da Corte.