Este artigo apresenta uma visão otimista da Lei 14.133/2021 e de seus impactos sobre o Sistema de Registro de Preços.[1]
A legislação dos anos 1990 era lacônica ao tratar do Sistema de Registro de Preços. A Lei 8.666/1993 se limitava a mencioná-lo, remetendo seus contornos para regulamentação infralegal (art. 15, II e §§). Isso não impediu que o SRP ganhasse terreno em virtude de seus benefícios evidentes: flexibilidade para atender necessidades incertas, redução de custos administrativos com diversos procedimentos de contratação e simplificação procedimental para aquisições recorrentes.
Não demorou para os problemas se manifestarem: falta de transparência sistêmica, vícios de planejamento, absoluta incerteza quanto à efetivação das contratações e uso indiscriminado de adesões (a figura do carona…) tornaram-se disfunções inerentes. Os Tribunais de Contas passaram a se preocupar com o registro de preços, pois:
- A incerteza da contratação eleva os preços na medida em que os fornecedores embutem um “prêmio de risco” para compensar os custos de oportunidade caso a requisição de fornecimento não se concretize;
- A possibilidade de realizar licitação sem prévia dotação orçamentária específica acaba servindo de incentivo para a desorganização, tornando o SRP instrumento fértil para contratações improvisadas e não planejadas; e
- A fragilidade das adesões sem análise prévia relativamente à regularidade formal do procedimento que originou a ata e a ausência de exame técnico de conformidade entre os bens e serviços registrados vis a vis as necessidades da Administração aderente transformam o “carona” em desvio, simples fuga do procedimento de contratação regular.
A Lei 14.133/2021 altera esse cenário. E não apenas através de normas mais minuciosas, como também do que tenho chamado de suas “características estruturantes”, dentre as quais destaco o uso intensivo de recursos eletrônicos (p. ex. art. 174), a valorização do planejamento (p. ex. art. 18, caput, §1º) e da padronização (p. ex. art. 19, I e IV), e o reconhecimento das dificuldades práticas da gestão pública (p. ex. art. 5º, LINDB como um dos princípios da Lei 14.133/2021; e art. 147).
Dentre todos os institutos, o Sistema de Registro de Preços talvez seja o que ilustre melhor os impactos dessas novidades. Não é por acaso: os problemas históricos do SRP são, essencialmente, problemas de planejamento, informação, transparência e coordenação – precisamente as áreas em que os instrumentos digitais e de planejamento demonstram maior potencial.
A revolução silenciosa
A Lei 14.133/2021 transformou a arquitetura de governança e controle das contratações públicas a partir de três instrumentos fundamentais: o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), o Plano de Contratação Anual (PCA) e os catálogos eletrônicos de padronização.
O PNCP é uma plataforma de governança das contratações públicas, que armazena todo histórico do procedimento de contratação e da execução contratual (art. 174). Fornecedores podem visualizar padrões de demanda em nível nacional. Unidades administrativas podem comparar preços em contextos similares aos seus. Órgãos de controle passam a ter recursos para identificar anomalias a tempo de prevenir desvios. A transparência deixa de ser princípio abstrato para se tornar um alicerce concreto dos negócios públicos.
O PCA é um instrumento de planejamento, de previsibilidade, e não uma formalidade burocrática (art. 12, VII, e §1º). No registro de preços, o PCA permite que fornecedores conheçam as estimativas de demanda do respectivo órgão ou entidade, reduzindo a incerteza. A partir de um histórico plurianual de PCAs, será possível antever necessidades e se preparar para atendê-las no tempo certo. O “prêmio de risco” encontra antídoto na previsibilidade estatística.
Mais importante: o PCA força planejamento mesmo sem dotação orçamentária específica para licitar – que permanece exigível como condição imediatamente anterior à efetiva contratação –, alterando a lógica do improviso para a do exercício prospectivo.
Os catálogos eletrônicos de padronização reduzem o risco de especificações técnicas direcionadas, facilitando comparações e diminuindo desvios (art. 19, II e §§ 1º e 2º). No registro de preços, entidades interessadas podem verificar se as especificações registradas estão de acordo com a padronização, atendendo suas necessidades e atenuando as chances de incompatibilidades regionais.
Como PNCP, PCA e Catálogos Eletrônicos de Padronização respondem às preocupações com o SRP
A convergência desses três mecanismos responde estruturalmente às preocupações históricas dos Tribunais de Contas relativamente ao Sistema de Registro de Preços.
Sobre a incerteza nos preços: a publicação obrigatória dos PCAs no PNCP permite a formação de um histórico plurianual das necessidades e das aquisições dos órgãos e entidades da Administração Pública, transformando incerteza em risco mensurável. Fornecedores deixam de precificar o desconhecido para trabalhar com probabilidades. Mercados funcionam melhor com informação simétrica. O “prêmio de risco” é significativamente reduzido ou desaparece quando passa a ser mensurável. O PCA e o PNCP permitirão que isso aconteça.
Sobre desorganização orçamentária: o PCA não elimina a possibilidade de licitar a formação de registro de preços sem dotação, mas estabelece uma perspectiva confiável para a efetiva contratação e seus impactos nas contas, pois serve de subsídio para a elaboração das leis orçamentárias. O que muda é a lógica temporal: sob a legislação revogada, o SRP era usado reativamente para cobrir imprevistos ou contornar a total falta de planejamento. Na Lei 14.133/2021, o PCA força exercício prospectivo mais apurado. O improviso não desaparece, mas se torna custoso em termos reputacionais e jurídicos.
Sobre “caronas indevidas”: a arquitetura do PNCP permite verdadeira due diligence antes de a Administração optar por aderir à dada ata. Entidades interessadas podem acessar o histórico completo da licitação, verificar a ocorrência de impugnações, comparar preços com outras atas e consultar o desempenho dos fornecedores. Quando toda informação está a um clique, a justificativa genérica para aderir se torna insustentável. A compatibilidade de preços e a convergência entre o bem ou serviço registrado e as reais necessidades da Administração aderente deixam de ser mero artifício retórico e se tornam empiricamente verificáveis.
Desafios e conclusão
Otimismo não é ingenuidade. Três desafios persistem: assimetrias regionais (preços paulistas podem não refletir mercado amazonense); vícios na licitação de origem (adesão ainda que bem-intencionada não sana ilegalidades); e capacitação dos operadores (tecnologia só funciona quando compreendida).
Logo, a tese otimista deste artigo não se baseia em fé tecnológica ingênua, mas na compreensão de que informação confiável altera incentivos e constrange oportunismos. PNCP, PCA e Catálogos Eletrônicos de Padronização não são panaceias, mas instrumentos que, operados consistentemente, criam ambiente institucional mais sofisticado e adequado às inúmeras necessidades da Administração Pública e seus quadros de profissionais.
Nos primeiros anos de implantação da Lei 14.133/2021 e dos recursos que ela proporciona, os benefícios serão incipientes. Mas dentro de algum tempo – cinco anos, talvez –, com séries robustas de informação e cultura consolidada, o Sistema de Registro de Preços poderá finalmente fazer a boa diferença. Não por magia legislativa, mas por transformação do ambiente informacional.
A transformação, contudo, não se opera automaticamente. É fundamental que órgãos e entidades invistam em Estudos Técnicos Preliminares consistentes e Planos de Contratação Anuais bem estruturados. São esses instrumentos que permitirão identificar oportunidades vantajosas. Um ETP rigoroso fornece parâmetros para verificar as necessidades da Administração e as especificações do que ela precisa contratar; um PCA bem planejado demonstra que determinada adesão não é improviso, mas estratégia consciente de contratação.
Cabe aos operadores aproveitarem as oportunidades com olhos no futuro (cuidado para não vestir os óculos da legislação do passado). O desafio não é mais regulatório, mas institucional e cultural. O tempo é aliado importante; deve-se agir com paciência, prudência e persistência – mais um tipo de PPP.
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As opiniões expressas neste artigo são de exclusiva responsabilidade de seu autor e não se confundem com as das instituições que integra
[1] As ideias deste artigo foram apresentadas publicamente pelo autor em 13/12/2025, no evento “Jornada em Contratações Públicas no Brasil: Licitações, Concessões, Desafios e Oportunidades”, promovido pela Escola Superior de Gestão e Contas Públicas do Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM-SP) e pelo Observatório de Contratações Públicas, este último coordenado pelos profs. Lilian Regina Moreira Pires e Antônio Cecilio Moreira Pires, da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, a quem agradeço o convite.

