Faz parte da trajetória administrativa brasileira o ímpeto recorrente de promover movimentos de descentralização, desconcentração, autarquização ou, mais recentemente, de agencificação do Estado. A criação de organizações com propósitos específicos — muitas vezes concebidas como ilhas de excelência que possam sem as amarras e precariedades das estruturas administrativas tradicionais, especialmente a ministerial — tem inspirado sucessivas propostas reformistas no país.
Exemplos desse impulso podem ser encontrados no Decreto-Lei 200, de 1967, bem como, nos anos 1990, no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado[1]. A aspiração de dotar o Estado de arranjos mais ágeis, técnicos e competentes frente a desafios estratégicos ou compromissos de governo permanece viva e relevante.
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Frequentemente, tais iniciativas refletem expectativas voltadas à obtenção de ganhos imediatos de eficácia e eficiência, e não raro recorrem a modelos de gestão e desempenho oriundos do setor privado como referência para a atuação dessas novas entidades.
Recentemente, o ótimo artigo publicado no JOTA sob o título “Por um órgão público para a agenda digital”, assinado por James Görgen e Luiz Alberto dos Santos[2], reforça esse movimento.
Diante do avanço das plataformas digitais e da inteligência artificial, os autores propõem — ainda que por caminhos próprios —a criação de um “[novo] órgão único, enxuto, que atue conectando os pontos da agenda digital”, como destacam no texto. A proposta sugere conferir a esse órgão o status de autarquia especial, hoje reservado às agências reguladoras, para se dedicar a resolver a atual indefinição quanto à autoridade pública responsável por liderar a agenda digital no âmbito da Administração Pública Federal.
Mais do que uma resposta organizacional, a criação de tal entidade permitiria a devida focalização temática e funcional, viabilizada por uma estrutura própria, dotada de novas carreiras, competências e orçamento — um passo decisivo para fortalecer a capacidade estatal em um dos temas mais estratégicos da atualidade.
Sem desmerecer a relevante contribuição de Görgen e Santos ao debate, o artigo oferece uma oportunidade propícia para aprofundarmos a reflexão sobre essas alternativas institucionais, especialmente à luz dos achados de um estudo acadêmico recentemente publicado na Revista de Administração Pública (RAP) da FGV[3].
Nesse trabalho, buscamos testar hipóteses sobre a agencificação do Estado no Brasil, com base em dados do Global Survey of Public Servants — projeto internacional que coletou informações junto a milhares de servidores públicos do governo federal brasileiro.
Nosso objetivo foi examinar as possíveis vantagens comparativas da agencificação, entendida como a desconcentração da autoridade estatal por meio da criação de autarquias e agências especializadas. Para isso, analisamos a percepção dos servidores acerca de atributos-chave de capacidade estatal das agências reguladoras em contraste com os demais órgãos da administração federal, a partir de uma abordagem quantitativa baseada na comparação estatística dos dados de survey entre os dois grupos.
Os resultados, embora revelem aspectos positivos associados às agências, não são integralmente favoráveis a elas, indicando que a criação de novas entidades deve ser cuidadosamente ponderada, diante dos desafios estruturais da burocracia brasileira. A opção pelas agências, portanto, não deve ser encarada como uma panaceia institucional.
Do mesmo modo, as evidências empíricas não validam a pressuposição — historicamente assumida como correta no Brasil — de que desconcentrar o Estado (por meio da criação de autarquias, agências ou outras “ilhas de excelência”) resulta automaticamente em ganhos de desempenho.
Em tese, o contrário também pode ocorrer. Circunscrito aos dados do nosso estudo, não se pode afirmar, ainda, que as agências são mais meritocráticas do que o restante do governo, mesmo que os dados confirmem que essas entidades, em média, são mais bem estruturadas e mais favorecidas na alocação orçamentária.
O artigo tampouco comprova que as agências reguladoras são, na prática — o que não necessariamente reflete o que dispõe a lei —, mais autônomas. Por fim, nossos achados se alinham a estudos clássicos[4] que já indicavam a impossibilidade de garantir, a priori, uma relação causal entre a autonomia legal conferida às agências públicas e seu desempenho efetivo no cumprimento de suas atribuições.
Em síntese, nosso estudo procura lançar luz sobre os dilemas e implicações da agencificação. Apesar da especialização temática das agências representar ganhos de eficácia não desprezíveis, essa opção envolve um claro trade-off: ao mesmo tempo em que pode fortalecer capacidades específicas, tende a fragilizar a coordenação e a coerência interna no aparato estatal.
Os dados que analisamos — somados a evidências de outros estudos — indicam que a criação de novas agências não garante, por si só, maior mérito, autonomia ou desempenho superior. Além disso, há o risco de desvalorização de órgãos já existentes, como os ministérios, sempre que novas estruturas assumem agendas estratégicas. Essa não é uma crítica simplista ou fiscalista, mas um alerta para os limites práticos da agencificação como solução generalizada.
Enfrentar os desafios dinâmicos da transformação digital e da inteligência artificial exige, sim, contínuo investimento e priorização na agenda governamental, mas isso não se traduz necessariamente na criação de uma nova agência. Mais relevante é assegurar a valorização, capacitação e coordenação dos quadros técnicos que já atuam nessa política, seja em estruturas existentes ou futuras. A decisão institucional deve considerar os ganhos potenciais, mas também os custos e incertezas envolvidos.
[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/transformacao-do-estado-para-a-cidadania-e-o-desenvolvimento-nacional?utm_source=jota-info&utm_medium=materia&utm_campaign=compartilhamento-whatsapp&utm_id=compartilhar.
[2] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/por-um-orgao-publico-para-a-agenda-digital
[3] Cunha, B. Q., & Cavalcante, P. (2025). Quantidade significa qualidade? Comparando evidências de capacidade burocrática e desempenho entre grupos de agências no Brasil. Revista De Administração Pública, 59(2), e2023–0416. https://doi.org/10.1590/0034-761220230416.
[4] Verhoest, K., Peters, B.G., Bouckaert, G. & Verschuere, B. (2004), The study of organisational autonomy: a conceptual review. Public Admin. Dev., 24: 101-118. https://doi.org/10.1002/pad.316.